OPINIÃO Ano XI – 113 Outubro 2004

 

O  BI CENTANÁRIO DE UM EDUCADOR

Nossa Opinião: Rivail e Kardec

Editorial:  O Bicentenário de  um livre-pensador

Notícias:  Imortalidade – Mito ou verdade?    Trabalho sobre jovem é reapresentado na ULBRA     CCEPA reativa Grupo Juvenil        Novos CIESP matriculam 81 alunos       

Opinião em Tópicos:  Ecumenismo ou confusão? – Ecumenismo e pluralismo religioso – Ecumenismo e sincretismo -  Sincretismo afro-católico?    (Milton Medran Morreira)

Enfoque:  A Síntese Kardequinana (Maurice Herbert Jones)

Opinião do Leitor

 

 

 

O BICENTENÁRIO DE UM EDUCADOR

 

Centro Cultural Espírita de Porto Alegre assinalou o bicentenário de nascimento de Allan Kardec com a conferência de Maurice Herbert Jones “A Era de Kardec”, dando especial destaque ao caráter marcadamente pedagógico da obra do insigne aniversariante.

 

            A conferência de Jones

            Destacado pensador espírita e conhecedor profundo da vida e da obra de Allan Kardec, Maurice H.Jones ocupou a tribuna do CCEPA na noite de 4 de outubro, primeira segunda-feira do mês, ocasião em que, habitualmente, se realiza ali uma conferência pública mensal. Discorreu sobre “A Era de Kardec”, homenageando o bicentenário do nascimento do fundador e codificador do espiritismo que se celebrara no dia anterior.

            Em seu trabalho, Jones sublinhou as influências hauridas pelo Prof. Rivail desde sua formação como pedagogo e na condição de homem permanentemente preocupado com as grandes questões de seu tempo. Seus estudos, pesquisas e reflexões a partir de uma etapa de sua vida deram origem a uma magnífica síntese, corporificando a proposta espírita de Allan Kardec.

           

            A síntese kardequiana

            Na secção Enfoque (última página desta edição), Opinião publica artigo de Maurice H.Jones com o título de A Síntese Kardequiana onde alguns aspectos de sua exposição são enfocados. De seu artigo, destacamos:

            “Como se vê, Kardec não foi um filósofo na acepção mais usual do termo, nem exatamente um cientista. Foi, isto sim, e acima de tudo, um extraordinário pedagogo, qualificação essencial para a compreensão e propagação do Espiritismo até os dias atuais.

            A precoce percepção de que somente a educação e o amor poderiam encaminhar solução para os problemas sociais e morais do seu tempo fez de Kardec  herdeiro natural de uma magnífica linhagem de educadores que começa, no século XVII, com Comenius, o pai da didática moderna, passa, no séc. XVIII, pelo filósofo J.J. Rousseau e seu Emílio.”

 

            Registro na imprensa

            O prestigiado jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, em sua edição de 1º de outubro último, veiculou artigo do editor deste jornal, Milton R. Medran Moreira, que também é diretor do Depto de Comunicação Social do CCEPA e presidente da Confederação Espírita Pan-Americana, sob o título de Kardec: 200 anos. Ali, também é conjugada a obra de Rivail e Kardec, especialmente neste trecho:

            Um homem e duas personalidades que, no entanto, se entrelaçam e se completam: Rivail e Kardec. O primeiro bebeu na Escola de Yverdum modernos e libertadores conceitos pedagógicos sustentando que o amor deflagra no educando o processo de auto-educação intelectual, física e moral. O segundo foi mais além e vislumbrou no espírito humano o ser atemporal, essência inteligente vocacionada ao progresso infinito, pelas leis magnânimas da evolução. Somando a obra de um e de outro, estaremos diante de uma consistente e generosa proposta que conjuga educação, humanismo e espiritualismo”.

 

Nossa Opinião

RIVAIL E KARDEC

            Em algumas monografias que publicou ao final de sua vida física, no ano de 2.000, o pensador espírita  brasileiro Krishnamurti de Carvalho Dias resolveu abandonar definitivamente qualquer referência ao nome Allan Kardec. Passou a referir-se ao fundador do espiritismo simplesmente como “Professor Rivail”. Numa de suas obras, justificou: o nome Allan Kardec havia se tornado demasiadamente comprometido com uma forma de crença que fugia muito da proposta pedagógica e humanista, baseada num espiritualismo científico e filosófico, adotada pelo mestre lionês.

            A observação do irreverente autor de O Laço e o Culto não deixa de ser verdadeira. Está no inconsciente coletivo que Kardec é, apenas e tão-somente, o fundador de uma nova religião que como tal se estruturou e teve boa penetração no Brasil, figurando hoje como uma das três crenças com mais seguidores em nosso país.

            Mas, até aí, temos nada mais que uma pálida e distorcida imagem de Kardec. Como o sabem seus estudiosos, sua obra é muito mais que isso. Transcende o estreito círculo da fé religiosa, para se fazer, na verdade, uma audaciosa e revolucionária proposta de educação do homem a partir do paradigma do espírito imortal e de seu potencial progressista.

            Nós, por aqui, mesmo reconhecendo as imensas distorções a que submeteram a grandiosa figura de Kardec, temos preferido continuar investindo no resgate de sua autêntica personalidade, que só se tornou completa e definitiva quando se amalgamaram as notáveis figuras de Rivail e Kardec. Temos claramente presente que, 200 anos depois de seu nascimento, esse homem continua sendo o grande desconhecido inclusive de muitos que se dizem seus seguidores.

            Numa palavra, parece imprescindivelmente necessário superar o mito que em torno de seu nome se criou para que, definitivamente, se evidencie e se fortaleça a imagem do grande homem que foi Allan Kardec, emérito continuador da obra do pedagogo Hippolyte Leon Denizard Rivail, nascido a 3 de outubro de 1804. (A Redação). 

 

 

Editorial

 

O BICENTENÁRIO DE UM LIVRE-PENSADOR

 

Desde que o pensamento é detido por uma convicção qualquer, não é mais livre.”

(Allan Kardec).

 

            Allan Kardec, cujo bicentenário de nascimento comemoramos, foi genuinamente um livre-pensador. E o foi em todas as fases de sua vida. Tanto no momento em que duvidou da possibilidade de as mesas girarem e falarem, quanto a partir do instante em que reconheceu no fenômeno a verdadeira revolução paradigmática que iria propor ao mundo, a partir da realidade concreta do espírito.

            Após haver sido serenamente conduzido, pelo raciocínio e pela experiência, à convicção da concretude do espírito, argumentou veementemente contra a idéia de seu tempo, de arraigado materialismo, segundo a qual só eram livre-pensadores os materialistas. Rejeitou essa limitada forma de conceber o livre-pensamento, escrevendo: “No sentido exclusivo que alguns lhe dão, em vez de emancipar o espírito, restringe a sua atividade, escravizando-o à matéria. Os fanáticos da incredulidade fazem num sentido o que os fanáticos da fé cega fazem em outro.” (Revista Espírita, fev.1867, “Livre Pensamento e Livre Consciência”).

            Com idêntica força e na mesma manifestação, também criticou aqueles que sobrepunham a fé a qualquer exercício do livre-pensamento, postura oficial, naquele momento histórico, da Igreja que, em sucessivas bulas e encíclicas, condenava o exercício do livre-pensamento: “Então, estes (os fanáticos da fé cega) dizem: Para ser segundo Deus é preciso crer em tudo o que cremos; fora de nossa fé não há salvação.” (idem).

            Posicionando-se, assim, tanto contra o materialismo quanto contra o fideísmo religioso, Kardec definiu magistralmente o que é o autêntico livre-pensamento:

            “Em sua concepção mais larga, o livre-pensamento significa: livre exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; não quer mais escravos do pensamento, quanto não os quer do corpo, porque o que caracteriza o livre-pensador é que pensa por si mesmo, e não pelos outros; em outros termos, sua opinião lhe é própria. Assim, pode haver livres-pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre-pensamento eleva a dignidade do homem: ele dela faz um ser ativo, inteligente, em vez de uma máquina de crer”.

            A partir desse raciocínio, Kardec classifica o espiritismo como uma proposta genuinamente livre-pensadora, eis que aquele “estabelece como princípio que antes de crer é preciso compreender. Ora, para compreender há que usar o raciocínio. Por isto procura dar-se conta de tudo antes de nada admitir, a saber, o porque e o como de cada coisa”. E acrescenta, para situar o espiritismo no campo que lhe é próprio, ou seja, nem o das religiões e nem o do materialismo: “Não procurando o Espiritismo afastar nenhum dos concorrentes na liça aberta às idéias que devem prevalecer no mundo regenerado, está nas condições do verdadeiro livre-pensamento; não admitindo nenhuma teoria que não seja fundada na observação, está, ao mesmo tempo, nas do mais rigoroso positivismo; enfim, tem sobre seus adversários das duas extremadas opiniões contrárias, a vantagem da tolerância”.

            Como se vê, nosso insigne homenageado deste mês, situou exatamente a condição de livre-pensador no terreno em que, aqui, insistimos sempre em situar: numa região neutra, fora dos domínios da fé, mas firmemente apoiada nos valores do espírito. Assim mesmo, a uns e a outros acena, em qualquer circunstância, com a bandeira da tolerância, característica de quem reconhece que todos estamos em busca da verdade e que ninguém é dela detentor exclusivo.

 

Allan Kardec, cujo bicentenário de nascimento comemoramos, foi genuinamente um livre-pensador.           

 

 

Notícias

 

IMORTALIDADE – MITO OU VERDADE?

 

            Seguindo sua programação de conferências especiais na primeira segunda-feira de cada mês, o conferencista do próximo mês de novembro será o presidente da CEPA, que também é diretor de do Departamento de Comunicação Social do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, Milton Medran Moreira.

            Medran, no dia 1º de novembro, véspera do tradicional “Dia dos Mortos”, às 20h30 min., abordará no auditório do CCEPA, em palestra aberta ao público, o tema “Imortalidade – Mito ou Verdade?”.

 

TRABALHO SOBRE JOVEM É REAPRESENTADO NA ULBRA

 

O trabalho “Instituição Espírita: O Olhar do Jovem sobre este Espaço”, apresentado por Maria de Fátima e Mariana Canellas Benchaya como Tema Livre do XIX Congresso Espírita Pan-americano, foi reapresentado por esta última na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em Canoas-RS, na disciplina de Intervenção Terapêutica Grupal oferecida pelo Curso de Psicologia, no dia 16 de setembro de 2004.

 

 

CCEPA REATIVA GRUPO JUVENIL

 

Desde o dia 7/10, está em funcionamento o grupo de jovens do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, cujas reuniões acontecerão às 5as. Feiras, das 20 às 21h30min. Para coordenar essa atividade, foi designada a companheira Maria de Lourdes Darcie, que contará com a monitoria de Mariana Canellas Benchaya, filha de nosso diretor Salomão Benchaya. Os doze primeiros integrantes já estão participando do Curso de Iniciação ao Espiritismo, com duração de seis semanas, às 5as. feiras, após o qual darão início a uma programação específica de atividades.

 

 

NOVOS CIESP MATRICULAM 81 ALUNOS

Sob a coordenação de Salomão J. Benchaya e Maurice H. Jones, estão sendo realizados, no CCEPA, respectivamente nos períodos de  6/10 a 10/11 e 7/10 a 11/11/04, mais dois Cursos de Iniciação ao Espiritismo. Os referidos cursos funcionarão às quartas-feiras, das 15 às 16h30min, e às quintas-feiras, das 20h30min às 22 horas, contando com a presença de 81 inscritos.

 

Opinião em Tópicos

 

Milton R. Medran Moreira

 

            Ecumenismo ou confusão?

            Na lista de discussão da CEPA – cepa@grupos.com.br –, um espaço aberto ao debate espírita, pela Internet, esses dias apareceu uma pérola enviada pelo listeiro Homero Ward da Rosa, Delegado da CEPA em Pelotas, RS, retirada da edição de 20/9 do Diário Popular, daquela cidade. Transcrevo a notícia ipsis litteris: “Aniversário – Fundado em 20 de setembro de 1946, o Centro Cultural Assistencial Espírita de Umbanda/Kardec Pai Bernardo e Jaime Carvalho completa nesta segunda-feira 58 anos de fundação. Localizada na rua 3 de Maio, 67, a entidade presidida por Vanderlei Petiz da Silva possui diversas obras assistenciais comunitárias, dentre as quais a distribuição de cestas básicas a famílias carentes cadastradas. O aniversário será comemorado com missa especial a partir das 18 hs., aberta à comunidade”. Ao transcrever a notícia na lista, Homero perguntava: o que é isso? Ecumenismo ou confusão?

            Ecumenismo e pluralismo religioso

            O ecumenismo é um movimento generoso, produto natural  do pluralismo religioso da modernidade. Somente se tornou possível depois que o protestantismo quebrou o monopólio do sagrado que, por 1.500 anos, foi detido autoritariamente pela Igreja Católica. Só quando se viu enfraquecido, o catolicismo concordou em entabular algum diálogo com as demais igrejas cristãs, permitindo que chegassem, em conjunto, a alguns acordos relativamente aos dogmas tidos como fundamentais pelas diversas igrejas. Mesmo assim, o chamado ecumenismo cristão tem experimentado alguns retrocessos, como foi aquele ocorrido, no ano 2.000, quando a Santa Sé emitiu o documento “Dominus Iesus”, onde reafirma a superioridade do catolicismo sobre as demais igrejas cristãs, declarando: "Apesar das divisões entre os cristãos, a igreja de Cristo continua a existir, em sua plenitude, na única Igreja Católica". É como se dissesse: há muitas igrejas e a gente até pode conversar, mas a verdadeira igreja de Cristo só é a que tem sede em Roma.

            Ecumenismo e sincretismo

            O ecumenismo, mesmo assim, tem feito progressos. Menos pelo desejo da Igreja Católica do que por uma necessidade de ela se adaptar às exigências do mundo moderno e nele sobreviver. Esse imperativo político a tem levado, inclusive, ao diálogo com outras religiões não-cristãs, papel que João Paulo II vem desempenhando muito bem.

            Uma coisa, entretanto, é ecumenismo e outra é sincretismo. Este sempre implica em uma mistura de dogmas, rituais ou liturgias de religiões diferentes. Nesse sentido, o próprio catolicismo surgiu de um grande sincretismo. Para se tornar a poderosa instituição capaz de substituir o Império Romano decadente, o catolicismo dos primeiros séculos tomou elementos ritualísticos gregos, judaicos, romanos e dos próprios povos bárbaros que invadiram Roma. Uma ilustração dessa política ocorreu no ano 432, no chamado Concílio de Éfeso. Naquela cidade da Ásia Menor, costumava-se prestar culto a uma entidade feminina. Aproveitando-se disso, a Igreja substituiu aquele culto pelo louvor a Maria, então declarada mãe de Deus e, na prática, uma quase-deusa.

            Sincretismo afro-católico

            No Brasil, como em outros países da América colonizados por católicos, o grande processo de sincretismo foi do catolicismo com as religiões africanas trazidas pelos escravos. Estes, para guardar elementos ritualísticos de suas tradições, adaptaram-nos à religião dos colonizadores. Aos orixás do candomblé e às entidades cultuadas pela umbanda sempre corresponde um santo do catolicismo. Há centros de candomblé e de umbanda que exigem de seus iniciados o batismo católico e a freqüência simultânea à Igreja. A famosa ialorixá baiana Mãe Menininha nunca se descuidou dos cultos igrejeiros e toda as efemérides que comemorava era com missas solenes que mandava celebrar. Esse sincretismo funcionou como um verdadeiro “hábeas corpus” aos cultos africanistas que se desenvolveram no Brasil, permitindo-lhes subsistir, enquanto o catolicismo foi religião oficial ou hegemônica.

            Agora, o que Kardec tem a ver com isso tudo? Absolutamente nada. Foi a imprudência dos espíritas, transformando o espiritismo numa seita mediúnico-cristã, desviando-o de sua natureza estritamente científica e filosófico/moral, que terminou por permitir esdrúxulas e incômodas parecerias do tipo Kardec/Pai Bernardo, que já resiste por 58 anos, em Pelotas e que, em alguma medida, impregnou todo o movimento espírita. Aí, Homero, mais que sincretismo, é confusão da qual custaremos muito a nos livrar.

 

Enfoque

A SÍNTESE KARDEQUIANA

Maurice H. Jones *

 

            Segundo o filósofo e pacifista britânico Bertrand Russel, a Filosofia é algo que se situa entre a Teologia e a Ciência. Todo o conhecimento definido pertence à Ciência e todo dogma, pertence à Teologia. Mas, entre a Teologia e a Ciência existe um território de ninguém, onde as nossas reflexões, as nossas idéias, os nossos mais simples pensamentos, transitam sem dificuldades, sem formalismos – esta terra de ninguém é uma terra de todos: é o chão da Filosofia.

            O mundo, indaga ele, está dividido em espírito e matéria?  Se assim é, o que é o espírito e o que é a matéria? Quem está sujeito a quem? Será o espírito dotado de alguma independência?  Possui o universo alguma unidade ou propósito e se possui estará ele evoluindo a caminho da sua finalidade? Será que existem mesmo leis da natureza ou acreditamos nelas devido ao nosso amor pela ordem? Existe alguma maneira de viver que seja mais nobre ou menos nobre? Em que consistiria o modo de vida nobre e como realizá-lo?

            Evidentemente não encontraremos respostas a estas questões nos laboratórios. Responder a elas é empenho da Filosofia pois, se nem  todas as nossas especulações podem ser respondidas pela Ciência, é também verdade que  as respostas confiantes dos teólogos, aceitas no passado, já não nos convencem mais,  conclui o pensador na suaHistória da Filosofia Ocidental”.

            Seria o Espiritismo uma resposta inteligente a estas profundas questões de ordem filosófica? Vários elementos que estruturam o pensamento espírita respondem positivamente a esta indagação e o credenciam como um modo moderno, ventilado e revolucionário de percepção do homem e do mundo, bem como precioso instrumento pedagógico para o autoconhecimento e controle racional da própria evolução. 

            O grande problema da ética como estudo racional da moralidade se resume em saber se é desejável ser bom e, em caso afirmativo, como pode ser o homem persuadido a ser bom. A esta intrigante questão o Espiritismo responde com a idéia da evolução e, sobretudo, com os princípios da reencarnação e da causalidade que oferecem substrato racional riquíssimo para a adoção consciente de um modelo comportamental fundamentado na tolerância racial e social, configurando assim a ética natural, sonhada por Sócrates, capaz de construir um sistema de moralidade independente de credos teológicos.

            Na visão do filósofo J.Herculano Pires, O Livro dos Espíritos, veículo privilegiado destas idéias inovadoras, mesmo não tendo sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto,  o arcabouço filosófico do Espiritismo.

            Como se vê, Kardec não foi um filósofo na acepção mais usual do termo, nem exatamente um cientista. Foi, isto sim, e acima de tudo, um extraordinário pedagogo, qualificação essencial para a compreensão e propagação do Espiritismo até os dias atuais.

            A precoce percepção de que somente a educação e o amor poderiam encaminhar solução para os problemas sociais e morais do seu tempo fez de Kardec  herdeiro natural de uma magnífica linhagem de educadores que começa, no século XVII, com Comenius, o pai da didática moderna, passa, no séc. XVIII, pelo filósofo J.J. Rousseau e seu “Emílio”, terminando  no grande e sábio mestre da educação como ato de amor, J.H. Pestalozzi.

            Como um estuário das correntes de idéias mais generosas e libertárias que irrigaram a cultura da Europa desde a Renascença, Kardec chegou à maturidade equipado, moral e intelectualmente, para a grande tarefa de sua vida: a construção de uma síntese conceptual do mundo moderno, a Codificação Espírita, centrada na idéia da evolução e na realidade e primado da vida espiritual.

            Esta extraordinária façanha, resultado do trabalho de homens encarnados, assessorados por homens desencarnados, tornou-se possível, no tempo e no espaço, pela feliz conjugação de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais aliados à sensibilidade, lucidez e coragem do mestre educador Hippolyte Léon Denizard Rivail cujo bicentenário de nascimento estamos comemorando neste 3 de outubro de 2004.

            Segundo muitos historiadores, o Renascimento  e a Reforma Luterana são as duas mais importantes nascentes da história moderna. Uma libertou o espírito e embelezou a vida, oferecendo ao homem o direito à felicidade aqui na terra; a outra estimulou a crença e o senso moral. As idéias contidas no bojo destes movimentos, propagadas pelas facilidades oferecidas pela descoberta de Gutenberg e dinamizadas pela revolução conceptual produzida pela descoberta da América e pela revelação de Copérnico, varreram a Europa a partir do final do Séc. XV e início do Séc. XVI, desencadeando uma  irresistível avalanche de mudanças, crises  e conflitos ideológicos num mundo cansado do repouso medieval e ansioso pela descoberta de novos mundos, novos caminhos, novas idéias.

            No Século XVIII o Renascimento cede espaço para o Iluminismo que, tendo razão e liberdade como estandarte, enfrenta a superstição e a opressão, produzindo significativa redução de importância da Igreja e influindo por seus princípios na independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, fatos que, entre outros, assinalam o colapso da França feudal, uma importante ampliação das liberdades civis e a transição da Idade Moderna para a Contemporânea.

            Se acrescentarmos a este sintético painel o crescimento exponencial da população a partir de 1750 em função de avanços na produção agrícola, higiene e medicina e mais a revolução industrial iniciada na Inglaterra provocando intenso deslocamento das populações rurais para as cidades com todo o conjunto de conseqüências sociais, políticas e econômicas, encerraremos o século das luzes já experimentando um certo cansaço da arrogância racionalista e criando espaço para o surgimento do Romantismo que valorizando o sentimento caracteriza o século XIX, o século de Kardec.

            O nascimento em 1804 e a formação intelecto-moral  do futuro Codificador do Espiritismo ocorre em plena era de Napoleão que, no mesmo ano é coroado Imperador  e promulga o Código Civil dos Franceses ou “Código de Napoleão”, de importância decisiva no direito ocidental e, conforme o próprio Imperador, sua maior obra.

            Kardec era um homem da sua época, cosmopolita, sensível, arguto e naturalmente aberto às influências mais nobres que a história e a experiência lhe ofereciam. Enquanto aprimorava sua formação no Instituto de Pestalozzi em Yverdon e, depois, na vida profissional, como educador, outros acontecimentos ocorriam, com enorme significado e presença na sua futura e máxima obra.

            Além dos importantes desdobramentos geopolíticos do período napoleônico, podemos identificar as revolucionárias teorias evolucionistas de Lamark e Darwin de enorme repercussão,  a Filosofia Positivista de Auguste Comte e, até, o Manifesto Comunista de Marx e Engels, produto da agitação social da nova classe operária.

            Neste cenário imponente e desafiador, buscava-se afanosamente um novo modelo conceptual para o tempo novo que surgia, pois os paradigmas vigentes haviam esgotado a capacidade de oferecer segurança e identidade.  É então que, já maduro e sensível às inquietações do seu mundo e à convocação do mundo espiritual, Kardec aceita a responsabilidade de liderar o grande esforço para construção de uma nova visão de homem e de mundo, humanista e dinâmica, na qual razão e sentimento pudessem, harmonicamente, buscar a verdade.

            E assim, como uma flor tardia da primavera iluminista, nascida no solo adubado pelo romantismo de Rousseau e Pestalozzi, surgiu o Espiritismo que, com seu “humanismo espiritocêntrico”, busca superar, dialeticamente, o conflito entre o pensamento medieval centrado em Deus e o humanismo organocêntrico da renascença e iluminismo. A cosmovisão inovadora e sintética oferecida por Kardec ao mundo nascia, robusta e perturbadora, desafiando os paradigmas senis e anunciando, no dizer do físico inglês Oliver Lodge, “uma nova revolução copérnica”.

                                                                                                

* Maurice H. Jones, ex-presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul; ex-presidente e atual vice-presidente do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre; Assessor Especial da Presidência da CEPA.

 

Opinião do Leitor

 

Agradecimento

            Temos a grande satisfação de acusar e agradecer o recebimento do 111 do jornal Opinião, de agosto de 2004, salientando a excelência das matérias nele apresentadas, pelo que cumprimentamos o irmão dirigente e toda sua equipe de trabalho. Rogamos a Jesus que o abençoe sempre em todas as suas atividades.

            Osvaldo da Silva Melo – Presidente da Sociedade Espírita Bezerra de Menezes, Santa Maria, RS.