Artigo de Reinaldo Di Lucia - Publicado na Espirit Net em Abril de 2001

ULTRAPASSAR KARDEC

Recebi, há pouco, um e-mail de uma colega de CPDoc ( Centro de Pesquisa e Documentação Espírita ) um artigo de Josué de Freitas intitulado " Laicos, cultura e sabedoria " ( disponível via Internet no site http://www.novavoz.org.br/josue2.htm ), no qual o autor, mais uma vez, critica duramente a CEPA, na pessoa de seu presidente, Jon Aizpurua, e o chamado " Grupo de Santos ", personalizado no editor deste Abertura, Jaci Régis. Neste artigo, mais uma vez, o autor irrompe contra algumas das idéias expostas por estas organizações, em especial aquelas que contestam o caráter de Consolador Prometido, atribuído à doutrina espírita.

Pessoalmente, discordo de muitos dos conceitos ali expostos pelo autor. Dentre eles, seria possível citar os seguintes, por serem mais marcantes: que a doutrina espírita é dos espíritos, e não dos homens; que divergências de idéias desta ordem constituem desvios de conduta; que há dois tipos de conhecimento diferentes, um humano e outro divino; que " sabedoria é o conhecimento, a vivência e a submissão à Lei de Deus "; que a função da religião é instruir nesta Sabedoria; que Jesus ou Kardec tenham estabelecido uma " verdade a ser cumprida "; que, se em congressos espíritas não se falar em Jesus, ou não se fizer " preces de evocação dos bons Espíritos ", então Deus é o grande ausente; que, ao negar a idéia do Consolador Prometido, se tenha criado algum tipo de seita; que a CEPA não seja um organismo legitimamente espírita; que só sejam espíritas os que aceitam a tese do Consolador Prometido; e ( supremo absurdo ) que O Evangelho Segundo o Espiritismo seja o principal livro da doutrina espírita.

Mais preocupante que tudo isto, entretanto, é a crença subliminar, que permeia todo o texto ( e que, de resto, é a crença do movimento espírita oficial ), da impossibilidade de discordar de qualquer uma das idéias expostas por Kardec, em particular aquelas que versam sobre aspectos de religiosidade dos espíritos e dos espíritas.

A ideologia vigente nesse meio é a do argumento de autoridade: uma vez que Kardec tenha explicitado, escrito ou mesmo sugerido uma dada idéia, ela é verdadeira e definitiva. Não se pode sequer discutí-la ( a não ser para concordar com ela ipsis literis ), quanto mais dela discordar. É a transcrição, para o meio espírita, do dogma da infalibilidade: em vez da papal, da de Kardec ( e, lógico, da dos espíritos que com ele trabalharam ).

O chamado argumento de autoridade era método muito usado durante toda a Idade Média como árbitro para todas as discussões. " Tomás de Aquino falou " ou " Aristóteles disse " encerrava qualquer questão; não se podia, sob pena de incorrer no desagrado da Inquisição, ir contra tal argumento.

Claro está que esta forma de pensar serve e muito ao poder constituído: se é desejo justificar uma dada situação, ou sancionar uma alteração que interessa a este poder, basta interpretar, de forma conveniente, o que teria sido dito pela autoridade. Combinado com a limitação do conhecimento a uns poucos privilegiados, este foi um dos esteios para a manutenção da supremacia da Igreja por quase mil anos.

Este estado de coisas foi quebrado quando, com o advento do Renascimento, da Filosofia Moderna e da ciência, o homem passou a confiar mais em sua própria razão, e a necessitar, se não de provas cabais, ao menos de uma demonstração baseada não mais no que havia sido dito, mas em fatos e teorias intelectualmente sustentáveis.

Ora, Kardec, herdeiro legítimo dos principais pensadores desta época, jamais escorou-se no argumento de autoridade para fundamentar quaisquer idéias do espiritismo. Ao contrário, estabeleceu a razão como critério de validação das teses espíritas, afirmando explicitamente que não se devia confiar somente naquilo que lhe era dito, mas verificar se o exposto não violentava, de qualquer forma, nosso raciocínio. Só então aceitá-lo, e mesmo assim, com a restrição natural das ciências: sujeito a posterior verificação.

O que torna, então, o movimento espírita brasileiro, como um todo, refém deste meio ultrapassado de pensamento? Muitas são as razões, algumas de foro pessoal, outras de todo públicas:

Em primeiro lugar há, ao contrário do que se apregoa, muita falta de humildade. Acusam-nos, aos que procuram verificar, racionalmente, a atualidade das idéias de Kardec, de soberba e pretensão, por nos julgarmos a altura desta verificação. Mas maior soberba há em não admitir que estando errados em alguma idéia, há necessidade de a revermos, estudando com afinco para alterarmos certas posições pré definidas. Para admitirmos que nada é definitivo, precisamos colocarmo-nos, sempre, na posição de aprendiz – o que não é nada fácil, ao menos para alguns.

Há, também, de modo muito arraigado, a postura imobilista característica das religiões. Sendo o objetivo do espiritismo, como parece pensar o movimento espírita oficial, a salvação do homem, isto é, evitar que, de algum modo, ele " perca sua alma ", isto só pode ser alcançado em presença da verdade – a Verdade Absoluta trazida por uma revelação divina.

Não se pode esquecer também a questão do poder. O modo pelo qual o espiritismo constituiu-se no Brasil, endeusando espíritos e médiuns, fez com que estes assumissem uma posição absolutamente dominante perante toda a população espírita. Ora, admitir a possibilidade de uma revisão significaria abrir mão desse poder, dividi-lo e compartilhá-lo com outros, coisa praticamente impensável.

Finalmente, há a responsabilidade. Admitir que a doutrina espírita ( e, em última instância, a própria evolução pessoal e coletiva ) é construída, paulatinamente, por nós, homens, significa admitir a necessidade do empenho pessoal de cada um nesta construção. Significa que não somos meros usuários, mas artífices e criadores – e essa responsabilidade assusta.

Mas é possível, realmente possível, que Kardec estivesse errado? E a plêiade de espíritos superiores que estavam com ele, amparando-o e ajudando-o a codificar a doutrina? Só esse fato já não é garantia que aquilo que lhe foi revelado é efetivamente uma Revelação Divina, representando a Verdade Absoluta calcada na Lei Universal?

São, sim, possíveis erros em Kardec. Afinal, ele era humano, e os homens têm a característica de errarem na tentativa de acertar, e de aprenderem com os próprios erros. Kardec foi, indubitavelmente, um pensador brilhante, um cientista como poucos e um filósofo na acepção da palavra, por sua mente aberta ao novo. Mas, por isso mesmo, não era infalível, e algumas das suas afirmativas já se demonstraram inverídicas, como alguns têm chamado a atenção através de livros e trabalhos expostos em seminários e congressos sérios.

Nunca podemos esquecer que os espíritos nada mais são que as individualidades que estiveram encarnadas em um passado mais ou menos recente, que se ligam a nós por laços de afinidade e que, em sua maioria, reencarnarão, aqui ou alhures. Não são, portanto, detentores da verdade absoluta. E aqueles que atingiram níveis muito elevados na escala evolutiva sabem que cada um de nós precisa aprender sozinho, com seus próprios erros – sem interferências de qualquer modo em nosso livre-arbítrio.

Desta forma, temos que ultrapassar Kardec. Ultrapassá-lo não significa ignorá-lo, esquecê-lo, mas tão somente admitir que ele, com seu brilhantismo, foi até onde sua época e seu conhecimento permitiam, e que, depois dele, muito se desvendou do Universo e de suas leis. Ultrapassar Kardec é admitir, humildemente, que nosso conhecimento é ainda precário sobre a própria matéria; que dirá então do espírito, infinitamente mais complexo.

Claro que temos que fazê-lo de maneira prudente, embasando-nos na razão e na experiência. Primeiramente, definir o que é central na filosofia espírita, aquilo que, mudando, o descaracteriza completamente, a ponto de não termos mais sequer espiritismo. Depois, verificar, naquelas idéias que são acessórias a este núcleo, o que foi alterado com a evolução do conhecimento humano. Finalmente, questionar o próprio núcleo doutrinário, e verificar se ele ainda se sustenta.

Esta é uma tarefa hercúlea. Obviamente não se pode fazê-la desconhecendo Kardec, na totalidade, e não apenas um ou outro livro. Não se pode também esquecer dos grandes pensadores do espiritismo, Denis, Dellane, Bozzano, Herculano Pires, Mariotti, Porteiro, Imbassahy, André Luiz. Mas não se pode achar que o espiritismo pode sobreviver isolado, sozinho em seu mundo. É preciso que se construa uma ponte entre ele e o conhecimento não espírita. Se isso não for feito, corremos o risco de ficarmos para trás, não mais conseguindo, como queria Kardec, andar ombro a ombro com a ciência.

Ultrapassar Kardec não o desmerece. Na realidade, com isto se presta uma homenagem à sua memória – mostrando que os valores nos quais ele acreditava não se perderam, mas estão vivos em cada espírita.