Artigo de Reinaldo Di Lucia - Publicado na Espirit Net em Abril de 2001

RESGATE E PRECONCEITO

Entre o final de janeiro e o início de fevereiro deste ano, o técnico da seleção inglesa de futebol, Glenn Hoddle, foi demitido do cargo, devido a declarações consideradas preconceituosas. A repercussão destas declarações foi tão grande que até mesmo o primeiro ministro britânico, Tony Blair, chegou a pedir publicamente sua demissão.

Tais declarações diziam respeito aos deficientes físicos. Segundo o ex-treinador, os deficientes de hoje pagam agora pelo que fizeram de errado em vidas passadas. Ou seja, o sr. Hoddle foi punido pela defesa da aplicação direta da assim chamada, pelo movimento espírita, Lei de Causa e Efeito.

Já pensaram se a moda pega por este nosso país tropical? Quase a totalidade dos 3 milhões de espíritas declarados do Brasil perderiam seus empregos, estando sujeitos a um processo por crime de preconceito.

Entretanto, a acusação feita ao técnico de futebol faz sentido. Uma série de argumentos pode ser empregada contrariamente a esta postura, tão ao gosto do movimento espírita oficial brasileiro.

Para começar, algo de essencialmente doutrinário. O espiritismo é uma filosofia calcada estruturalmente na liberdade do indivíduo, através do mecanismo que chamamos de livre-arbítrio. Qualquer lei absolutamente determinista, do tipo que é sugerida pelas declarações do inglês, viola o princípio de soberania das relações entre os espíritos. Quero dizer com isto que, mesmo que tenha havido uma ação que tenha violado a lei natural ( um assassinato, por exemplo ), as possibilidades de perdão e ausência de sentimentos de culpa podem contribuir para uma reencarnação não punitiva, e, por isso mesmo, mais rica em aprendizado para o espírito.

Em segundo lugar, há o problema da legitimidade do julgamento. Uma reencarnação punitiva só pode ocorrer tendo o espírito supostamente faltoso sido julgado e condenado. Ora, a quem compete tal julgamento? Aos espíritos superiores? Mas também eles não foram anteriormente " culpados " de " crimes " semelhantes? Ou ao próprio Deus, numa absurda intervenção no Universo criado por ele e, por isso mesmo, perfeito? Teria Deus criado seres com possibilidade de errar somente par puni-los, de uma forma ou de outra?

Finalmente, há a questão da responsabilidade social. Logicamente, se os deserdados de qualquer forma, seja fisica ou socialmente, são os únicos responsáveis pelos seus infortúnios, a sociedade como um todo fica livre do ônus de lutar pelo fim de tais desigualdades. Há muito vemos argumentos que a pobreza não pode acabar, caso contrário, como ficariam aqueles que devem passar por esta prova? Estes argumentos repetem-se na questão dos deficientes, negando-se ao homem, repetidas vezes, o direito de interferir para acabar com esta situação. Enquanto isto, proliferam casos como os da Talidomida – afinal, não são apenas instrumentos da espiritualidade superior?

Em suma, a aplicação cega da causa e efeito como Lei de Talião ( olho por olho, dente por dente ) não só é irracional, como alienante. É preciso entender, de uma vez por todas, que as sucessivas encarnações são oportunidades de aprendizado, e que este só pode se dar plenamente com prazer e solidariedade. O mais é argumento de quem não sabe viver de outra forma, e que usa o " pecado " ( ou o karma, ou o resgate de dívidas ) como muleta para sua própria inferioridade.