Artigo de Charles Odevan Xavier - Dezembro de 2001

Representações Sociais da Homossexualidade em Páginas Espíritas

O propósito deste artigo é analisar as
representações sociais acerca da homossexualidade,
elaboradas por autores espíritas, vinculadas através de
páginas do site www.novavoz.org.br.
Para facilitar o trabalho do leitor,
forneceremos a conceituação prévia das categorias
utilizadas neste artigo, como representação social e
preconceito.
Segundo o Dicionário de Sociologia (1ª edição.
Globo: Porto Alegre, 1967), a Representação social trata-
se de : "Concepção e símbolos que resultam da interação
social e adquirem um significado comum para os membros
do grupo, suscitando-lhes reações emocionais
semelhantes". Podemos também refletir sobre a definição
de MOSCOVICI (1978): "Modalidade de conhecimento
particular que tem por função a elaboração e a
comunicação entre os indivíduos." Ou ainda de BOMFIM
(1992): "Não é todo conhecimento que pode ser
considerado como representação social, mas somente
aquele do senso comum, da vida cotidiana dos indivíduos,
que é elaborado socialmente e que funciona no sentido de
interpretar, pensar e agir sobre a realidade". Em
relação ao preconceito reunimos duas
definições: "Atitude emocionalmente condicionada,
baseada em mera crença, opinião ou generalização,
determinando simpatia ou antipatia com relação a
indivíduos ou grupos." (Dicionário de Sociologia.1ª
edição. Globo: Porto Alegre, 1967) e " é uma atitude
negativa, desfavorável para com um grupo ou seus
componentes individuais. É caracterizado por crenças
estereotipadas. A atitude resulta de processos internos
do portador e não do teste dos atributos reais do
grupo". (Dicionário de Ciências Sociais. Silva, Benedicto
(coord.). 2ª edição. Fundação Getúlio Vargas: Rio de
Janeiro. 1987).
O presente estudo foi feito a partir dos
seguintes artigos: "O homossexual e o trabalho na casa
espírita" de José Queid Tufaile Huaixan, "O
homossexualismo e os falsos profetas" de Vanda
Simões, "Homossexualismo e vampirismo" de José Herculano
Pires, "Homossexualismo: como compreendê-lo?" de
Vladimir Aras e " A delicada questão do homossexualismo"
de José Queid Tufaile Huaixan. Com base na AD (Análise
do Discurso, ramo da Sociolinguística) fizemos um
trabalho interdisciplinar de interpretação dos dizeres
produzidos por estes autores.
O que podemos ter como conclusão preliminar das
páginas lidas é de que se trata da produção discursiva
de um grupo discriminado (os espíritas) falando mal de
outro grupo discriminado (os homossexuais). A não ser
que se diga que a totalidade da população brasileira é
espírita, o que se percebe é que, ainda hoje, os
espíritas são vistos com preconceito e reservas no
imaginário popular. É sintomático admitir que o
termo 'espírita'  é associado a charlatanismo,
curandeirismo, necromancia e satanismo pela maioria do
povo.
No artigo "A delicada questão do
homossexualismo" de José Queid Tufaile Huaixan, o autor
tem a feliz constatação de que Allan Kardec não tratou
diretamente do assunto homossexualidade. E pensamos que
não poderia, posto que a Psicologia da época de Kardec,
resumia-se a um behaviorismo rudimentar limitado a
testes com cobaias, não muito interessado em investigar
o desejo humano. Mesmo sem ter procuração de Kardec,
pensamos que o codificador preferiu silenciar a ter que
repetir os surrados clichês judaico-cristãos sobre o
tema. Ele queria ciência e esta ainda não havia,
deixando para a posteridade um tratamento mais adequado
ao problema. Só mais tarde, Freud iria se pronunciar a
respeito, definindo os homossexuais como, no mínimo,
neuróticos, baseando-se nos relatos de seus pacientes. O
pai da psicanálise esqueceu-se de levar em conta o
contexto histórico. Se os clientes homossexuais que ele
tratava sofriam de várias perturbações e conflitos
emocionais, isso se devia sobretudo pela perseguição
policial e pelo medo da delação, pois o homossexualismo
era crime na maioria dos países europeus de seu tempo -
como bem mostra a biografia atormentada de um Oscar
Wilde.
É interessante a passagem em que Queid
afirma: "(...)teríamos a matéria como sendo responsável
por certas condutas morais nocivas do Espírito na vida
social. Em resumo, estaríamos nos tornando
materialistas." Que revela aquela antiga separação entre
corpo e espírito, contrariando a tendência holística de
ver uma interdependência dialética entre ambos, que
gerou até avanços da ciência atual como a Psicossomática.
Queid diz: "Fora da casa espírita o
homossexualismo é aceito em algumas sociedades como
sendo um comportamento normal", ou seja, dentro da casa
espírita, um lugar que parece estar em outra dimensão, o
homossexual é anormal. Cabe discutir o que é 'normal'.
Segundo BIDERMAN (1992) é: "Que é conforme a norma; que
é conforme aquilo que é mais freqüente". Em parte Queid
acertou, ainda persiste no senso comum que a norma é ser
heterossexual, que ser heterossexual é mais freqüente.
Embora a realidade venha mostrando um número crescente
de pessoas assumindo sua verdadeira sexualidade.
Queid afirma: " Sabe-se que a bissexualidade e a
homossexualidade são anomalias comportamentais provindas
de abusos provocados pelo Espírito em suas encarnações.
Portanto, é como uma anormalidade que o homossexualismo
deve ser tratado". O que é anomalia? Segundo o
Dicionário Brasileiro Globo(Vários autores, 20ª edição.
São Paulo: Globo, 1991) é : "Irregularidade;
anormalidade; aberração; monstruosidade." Percebam como
Queid constrói  o homossexual, ou seja, como um
deformado, um monstro.
Ocorre um primor de contradição, quando Queid
continua : "Não se quer com isso dizer que os irmãos com
essa problemática não tenha os mesmos direitos que
outros. O que não se pode aceitar com naturalidade é que
os homossexuais casem-se, ou que tenham o direito de
criar filhos, como ocorre em alguns países." Ou seja,
num período ele diz que os homossexuais têm os mesmos
direitos que os outros, mas no período seguinte ele nega
o que disse.
No parágrafo seguinte; "Não se deve ter nenhum
preconceito contra o homossexual, porém, é preciso ajudá-
lo a encontrar seu equilíbrio psicológico."  Ou seja,
para quem fala em preconceito é estranha a afirmação de
que todos os homossexuais são desequilibrados, como se
nota pelo artigo definido.
No penúltimo parágrafo, Queid pergunta se o
homossexual tem o direito de participar dos trabalhos
espíritas e responde: "Primeiro, devemos ajudá-lo a
encontrar-se." Ou seja, o homossexual está perdido e a
casa espírita, supostamente, sabe melhor do que ele
próprio qual o caminho a seguir. Fica implícita nessas
passagens, a prática comum entre as igrejas pentecostais
de "tratar" o homossexual, mudando sua orientação
sexual. O que fere a resolução do Conselho Federal de
Psicologia de autoria de Ana Bock, que proíbe os
psicólogos  brasileiros de tratar a homossexualidade
como doença. Ou seja, Kardec diz que o espiritismo deve
ir aonde a Ciência está, numa permanente atualização.
Mas não é o que se percebe no espiritismo reformista
desses autores.
Depois ele conclui: "A condição de homossexual não
impede ninguém de freqüentar reuniões públicas. Se o
homossexual tem vida sexual ativa no campo anormal em
que se situa, ele não será admitido na casa espírita
como trabalhador."  Em outros termos, pregando a
exclusão social, o homossexual pode até freqüentar a
casa espírita, mas jamais poderá trabalhar nela.
Em "Homossexualismo e vampirismo" de José Herculano
Pires, o autor é mais claro ao colocar a
expressão 'sexualidade mórbida' num texto sobre
homossexualismo. Ou seja, ele constrói a
homossexualidade como doença. O curioso é que o Conselho
Federal de Medicina, em consonância com a OMS, retirou o
item homossexualidade como um desvio sexual, em 1985 do
Código Internacional de Doenças . Portanto, os espíritas
reformistas estão mais uma vez atrasados em relação a
Ciência, pelo menos, 16 anos, esquecendo a orientação de
Kardec.
É oportuno refletir sobre o conceito de doença. Se
pensarmos doença como aquilo que incapacita o indivíduo
para a vida produtiva e para a vida social, então não
podemos generalizar, quando a realidade mostra
homossexuais arrimos de família, empresários bem
sucedidos, cientistas competentes, artistas talentosos,
professores comunicativos e até excelentes pais de
família - como revelou a recente decisão do juiz Ciro
Darlan em conceder o direito de adoção de crianças por
parte de um casal de homossexuais, depois de criteriosa
investigação de antecedentes.
No artigo "Homossexualismo:como compreendê-lo?" de
Vladimir Aras, ele escreve: "Se um determinado Espírito
em uma dada encarnação se revestir da forma masculina,
ele deverá enfrentar as provas reservadas a tal opção.
Se a encarnação desse Espírito se der no vaso feminino,
suas provas serão daquelas reservadas às mulheres, como
a maternidade, por exemplo". Ou, " (...)ao ser
espiritual que vivencia a experiência física masculina
não é dado fugir à prova da masculinidade.". Em outros
termos, o autor tem noções muito cristalizadas dos
papéis sociais. Esqueceu de que a noção do masculino e
do feminino é uma construção histórica e cultural,
diferindo em cada época e em cada latitude do planeta.
Em algumas civilizações ameríndias é o homem que fica de
resguardo, enquanto a mulher trabalha normalmente no
trabalho pesado da lavoura e ele cuida da cria. Entre os
germanos, por sua vez, era comum o hábito das mulheres
irem na frente dos batalhões de guerra, posto que era
uma sociedade matriarcal.
Mais à frente, o autor cita Carlos de Brito Imbassahy: "
O homossexualismo como prática costumeira em detrimento
do hetero é pernicioso, porque contraria a lei natural
dos seres vivos". E cita Ney Prieto Peres que diz: "(...)
como todo ato natural, a união sexual representa uma
manifestação divina quando as condições espirituais e os
reais objetivos são seguidos". E ele conclui; " Daí se
compreende que o ato sexual é divino quando suas
condições espirituais (prova masculina ou feminina) e os
seus reais objetivos (procriação, reencarnação) são
seguidos. Se tais condições e objetivos não são
atendidos, tem-se um ato antinatural  e desarmonizador,
que contribui para desagregar a mente do ser encarnado."
Ou seja, o autor pressupõe que os seres humanos sejam
naturais ou algum dia tenham sidos. Até onde se sabe,
gatos não temperam e cozinham ratos antes de comê-los,
nem formigas usam tesouras ao cortarem folhas; também
nunca tive notícia de pardais levando filhotes para
escolas ou abelhas construindo colmeias conforme o
último modismo arquitetônico. Portanto, se os humanos
não são naturais no comer, no usar, no aprender e no
morar, o que dirá na cama. Nos trechos citados,
encontramos vários problemas: os autores desconhecem que
o ser humano não é apenas integrante da natura, mas faz
parte da cultura. Também desconhecem a existência de
práticas homossexuais no reino animal, como demonstrada
pela pesquisa de um zoólogo na Revista
Superinteressante. Outro problema é pressupor que os
heterossexuais só façam sexo visando a procriação, como
desmente toda uma indústria de prostituição. E o mais
absurdo é quando o autor diz que a sexualidade tem como
único objetivo a procriação e a reencarnação.  Ou seja,
ele ignora a função catártica e aliviadora de tensões do
sexo. E há estudos que revelam que quando a libido é
reprimida, ela se manifesta somaticamente sob forma de
gastrites, dermatoses e cefaléias. Portanto, sexo é
sobretudo prazer.
A parte mais cômica do artigo é quando Vladimir Ares
diz: "(...)Se os casais homossexuais proliferam, perdem-
se valiosas oportunidades reencarnatórias, pois que
evidentemente não haverá procriação." Em outras
palavras, o autor entende a homossexualidade como uma
espécie de gripe. Ou seja, ao ficar próximo de um gay a
pessoa pode contaminar-se com sua homossexualidade,
tornando-se homossexual. Tese que abre um precedente
para que se pense o seguinte: se existe uma proliferação
de homossexualidade, o inverso também deveria existir:
homossexuais pegando o másculo micróbio da
heterossexualidade e tornando-se verdadeiros manga-
largas. Como igualmente cômica é a tese de Herculano
Pires: homossexualismo adquirido.
O artigo "O homossexualismo e os falsos profetas" de
Vanda Simões é curioso por sua própria autoria. A
autora, que é duplamente discriminada por ser mulher e
espírita, consegue ser mais intolerante e preconceituosa
do que seus companheiros homens. Ou será que preciso
provar que a mulher ainda hoje trabalha em casa de graça
feito uma escrava e ainda é obrigada a trabalhar fora,
depois do advento da industrialização, sendo duplamente
explorada pelo patrão e pelo marido?
A autora mostrando sua filiação fascista, rechaça as
conquistas dos movimentos homossexuais dizendo uma série
de inverdades, tais como: mudança de sexo ( que é uma
reivindicação dos transexuais e não dos homossexuais),
casamento entre si ( quando na verdade eles reivindicam
uma parceria civil, posto que o estado civil não muda),
adoção de filhos.
Para reforçar sua tese de que todos os homossexuais são
degradantes, anômalos, deformados, bizarros, anormais e
promíscuos, ela relata um caso isolado de um homossexual
que fez questão de beijar outro homem dentro de um
centro espírita. Depois na falta de argumentos mais
convincentes, ela cita o caso de um estuprador que
violentou uma menina. Ato falho de quem querendo
condenar a homossexualidade se utiliza de um
heterossexual - público responsável pela maioria dos
casos de violência contra a mulher conforme estatísticas.
E finalmente o artigo "O homossexual e o trabalho na
casa espírita" de José Queid Tufaile Huaixan. No tópico
frasal ele diz os objetivos do artigo: definir o que é
um centro espírita e o que é homossexualismo.
O que dizer do trecho; "(...)O serviço espírita, ao
contrário do que muitos pensam, é uma atividade
especializada. Isso quer dizer que para um indivíduo
desempenhá-lo a contento ele precisa se preparar para
isso." O Sr. Queid exige muito de quem trabalha de graça.
Acerca da participação do homossexual como trabalhador
fixo da casa espírita, ele diz: "Normalmente, os núcleos
possuem uma carência enorme de pessoal. Isso acontece
porque o tipo de atividade que neles se desenvolve é
desinteressante. Na ausência de pessoal, é comum os
dirigentes aceitarem trabalhadores sem qualquer
preparo." Supõe-se pelo dito que os homossexuais são
mais vocacionados para atividades desinteressantes ou
maçantes, como o trabalho com idosos por exemplo.
Na definição de homossexual Queid diz:" É um espírito
que possui uma anormalidade comportamental. A não ser
que se admita a existência de um terceiro sexo para os
homossexuais e um quarto sexo para os bissexuais, o
homossexualismo é uma conduta moralmente reprovável." O
autor confunde sexo biológico com papéis e/ou fantasias
sexuais. E continua: " Como se pode provar que o
homossexualismo é uma anormalidade de comportamento?
Simples, desde que se tem notícias da criação dos seres
humanos, nunca se ouviu falar de um terceiro ou quarto
sexo. Macho e fêmea os fez, dizem as Escrituras."
Insistindo na gênese anômala do homossexual, o autor se
baseia na Bíblia, ou melhor, na parte que lhe é
conveniente. Pois a Bíblia - que supostamente condena os
homossexuais, mas faz apologia da homofilia, como no
romance de Davi e Jonatan, também condena a consulta aos
mortos. Portanto, a Bíblia não deveria ser citada como
fonte indiscutível.
Cabe nessa altura discutir o que é realmente o
Espiritismo das Reformas. Assim como Trotsky militarizou
os sindicatos soviéticos, o Reformismo é a militarização
das casas espíritas, soterrando-as de normas
autoritárias e hierarquias inacessíveis.
Concluindo, os dizeres desses autores são típicas
representações sociais, porque se baseiam no senso comum
e não nas recentes resoluções da Medicina, da Psicologia
e do Direito, enfim, da Ciência, e como tal deve ser
denunciado.


Graduação em Letras-UFC e Neo-espírita.
charlesodevan@bol.com.br