Artigo de Katia Penteado - 2004

Diários de Motocicleta

O Homem e sua nossa missão é um assunto sempre interessante, que leva a profundas divagações, deixando clara a idéia de que falar é fácil, o difícil é vivenciar.  O complicado também é encontrar exemplos.  Prova está no fato de que todos usam sempre os mesmos nomes, nem todos espíritas, mas sempre inquestionáveis, esquecendo que muitas das pessoas tidas como comuns também são exemplos de missionários.

Essa idéia me surgiu enquanto assistia ao filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles, que fala de uma viagem do argentino Ernesto Guevara, com seu amigo Alberto Granado, quando ainda cursava a faculdade de Medicina, em Buenos Aires, muitos anos antes de seu engajamento político e de se tornar mundialmente conhecido como o líder revolucionário Che Guevara.  Não vou narrar o filme, assim quem não assistiu e pretende assistir não ficará frustrado, mas usá-lo como referencial.

Sem fazer propaganda ou defesa política de espécie alguma, destaco aqui apenas como me soou o crescimento de Ernesto, o seu despertar para o trabalho que se propôs a desempenhar no futuro como Che e que, naquele momento narrado no filme, ainda não lhe era consciente, não fora apreendido, mas começava a ser percebido; dicas surgiram e foram bem recebidas, posturas mudaram, a consciência ficou mais e mais desperta... Enfim, a transformação teve início.

De tudo isso fica claro que essa viagem foi para Ernesto Guevara o que a Porta de Damasco foi para Paulo de Tarso, mostrando que ser missionário e agir em auxílio ao próximo independe de opção ou crença religiosa. Alerta-nos também para o fato de que também nós, individualmente, temos nossas portas de Damasco e que recebemos diversos convites discretos e às vezes até pouco claros.

Longe de mim, transformar Guevara em um modelo.  Contudo, não é possível negar o papel por ele desempenhado na História mais recente do mundo em que estamos inseridos, principalmente na do continente a que pertencemos.  Seu engajamento proporcionou mudanças profundas, tornando-o um ícone, uma referência positiva e importante na vida de muitos.

Essa narrativa transposta para as telas de cinema por um cineasta brasileiro mostra-nos, também, que para dar conta da missão de cada um é imprescindível abrirmos mão de nosso passado, revermos nossas convicções e posturas, apostando no novo, no desconhecido, no futuro.  É sempre um convite à luta, não à luta como entendemos materialmente, mas à luta íntima, que conduz à transformação e à evolução. Resumindo: é trabalho, e trabalho árduo e útil, como está claramente expresso na questão 675 de O Livro dos Espíritos, na afirmação de que “toda ocupação útil é trabalho”, seguida de que o trabalho é meio de aperfeiçoar a inteligência (676) e que cada um se torna útil na proporção de suas faculdades (680).

Biografias como essa também nos ajudam a entender o que está dito em O Livro dos Espíritos, quando Kardec pergunta em que consiste a missão dos Espíritos encarnados.  A resposta é precisa: “Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa ou o que instrui. Tudo na Natureza se encadeia.  Ao mesmo tempo em que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a execução dos desígnios da Providência.  Cada um tem neste mundo a sua missão, porque todos podem ter alguma utilidade”.

Isso nos ajuda muito e nos mostra que ao menos temos a missão de cuidarmos de nossa própria evolução!