Artigo de Charles Odevan Xavier - Maio de 2003

Charles Baudelaire: Entre o Celestial e o Umbral

BAUDELAIRE E O SIMBOLISMO (CONTEXTUALIZAÇÃO)

Este artigo pretende fazer uma análise da obra do poeta francês Charles Baudelaire sob o ponto de vista mediúnico. Ou seja, em que medida a mediunidade orientou o poeta na escolha entre este ou aquele campo semântico.

 

Baseamos nosso trabalho na tradução de Ivan Junqueira do livro "As Flores do Mal", presente no título BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa: volume único.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

 

Segundo José de Nicola, o Simbolismo reflete um momento histórico extremamente complexo, que marcaria a transição para o século XX e a definição de um novo mundo, o qual se consolidaria a partir da segunda década do século passado; basta lembrar que as últimas manifestações simbolistas e as primeiras produções modernistas são contemporâneas da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa.

 

As correntes materialistas e racionalistas da segunda metade do século XIX não mais respondiam às exigências de uma nova realidade, já que o processo burguês industrial evoluía a passos largos, gerando, inclusive, a luta das grandes potências pelos mercados consumidores e fornecedores de matéria-prima. Por esses motivos, fragmenta-se a África e ampliam-se as influências sobre os territórios asiáticos. Tomava corpo, assim, o fantasma da guerra. Com isso conclui José de Nicola, que sempre que se torna difícil analisar o mundo exterior e entende-lo racionalmente, a tendência natural é nega-lo, voltando para uma realidade subjetiva; estaria assim criada a atmosfera ideal para o renascimento das tendências espiritualistas; o subconsciente e o inconsciente são valorizados, segundo a lição freudiana.

 

Em linhas gerais, alguns fatores criaram um campo propício para a deflagração da escola simbolista. A Revolução Industrial trouxe grave conseqüências, como crises financeiras, desemprego (eliminação de alguns postos de trabalho) e problemas urbanísticos (o crescimento caótico das grandes cidades). O homem que vivia no campo e em conluio com os ritmos da natureza, passou a morar em cortiços apertados e a ser regulado pelo implacável relógio da fábrica. Para esse homem espoliado, angustiado e estressado era natural que fosse seduzido pelos Rosa Cruzes, pelos adeptos de Swendeborg, pela Teosofia, pelo espiritismo de Kardec, pelo Mesmerismo, pela Metapsíquica, pelos esotéricos, já que a industrialização e a urbanização não trouxeram o bem-estar emocional e espiritual prometidos pelos positivistas e evolucionistas.

 

O ocidente descobre o Budismo através de Schonpeunhauer e Nietszche. Os europeus descobrem o cânhamo e seus derivados (por exemplo, o haxixe). O ópio e o absinto (uma bebida de forte concentração alcoólica que induz a surtos psicóticos) são comprados em qualquer esquina. Portanto, estão criadas as condições objetivas e subjetivas para o fomento do imaginário simbolista.

O simbolismo caracteriza-se pelo repúdio ao Realismo, Naturalismo e Parnasianismo, ou seja, a negação ao cientificismo e ao materialismo, valorizando as manifestações metafísicas e espirituais.

 

Com a invenção da fotografia, o escritor e o pintor passaram compulsoriamente a querer retratar objetivamente a realidade. Os simbolistas, por sua vez, irão rejeitar a realidade objetiva. Assim, eles resgatarão a subjetividade esquecida desde o romantismo.

 

O simbolismo caracteriza-se pela busca do vago, do diáfano, do sonho e da loucura, ou seja, o que em pintura vai dar no impressionismo de Degas e Cézanne. O poeta deve sugerir em vez de nomear, daí o uso da linguagem figurada, que apenas insinua, sem narrar ou descrever seres e sensações.

 

O decadentismo é outro traço do simbolismo, isto é, o uso de um léxico macabro em imagens bizarras e tétricas.

 

Charles Baudelaire (1821-1867), menino bem nascido e problemático, sofre de um trauma profundo com a morte do pai e a rápida viuvez da mãe, que se casa novamente com um militar que ele detesta. Adulto vive constantemente mudando de endereço, para fugir dos credores. Garante sua sobrevivência com traduções de Edgar Allan Poe e cobrindo salões de pintura com resenhas encomendadas. Participa das reuniões do Clube dos Haxixeiros. Publica "As Flores do Mal" e é processado por obscenidade. Trava amizade com vários pintores e escritores. E sucumbe em 1867 à sífilis contraída na juventude nos braços da mãe.

 

Baudelaire, sob a ótica que nos interessa investigar, apresenta uma obra poética visionária pautada por uma sensibilidade exacerbada e por uma mediunidade doentia.

 

KARDEC E A ALUCINAÇÃO

 

Para entendermos a natureza alucinatória da poesia de Baudelaire, cabe contemplar como Allan Kardec pensou a questão na obra "O Livro dos Médiuns" – São Paulo: LAKE, 1999.

 

Kardec pergunta:

 

"1. As visões são sempre reais, ou são algumas vezes efeitos da imaginação? Quando vemos em sonho, ou de outra maneira, o Diabo ou outras coisas fantásticas, que portanto não existem, não se trata apenas de imaginação?

- Sim, algumas vezes, quando a pessoa está chocada por certas leituras ou por estórias de feitiçaria, lembra-se delas e acredita ver o que não existe. Mas já dissemos também que o espírito, através do seu envoltório semimaterial, pode tomar todas as formas para se manifestar. Um espírito brincalhão pode aparecer com chifres e garras, se o quiser, para zombar da credulidade, como um Espírito bom pode aparecer de asas e maneira radiosa". (pág.100)

 

Kardec explica o mecanismo da alucinação:

 

"Essas imagens quase sempre são visões, mas podem ser também o efeito de impressões que a vista de certos objetos deixou no cérebro, que conserva os seus traços como conserva os sons. O espírito liberto vê então no seu próprio cérebro as impressões ali fixadas como numa chapa fotográfica. A variedade e a mistura dessas impressões formam conjuntos bizarros e fugitivos, que se esfumam quase imediatamente, malgrado os esforços que se façam para retê-los. É a uma causa semelhante que se devem atribuir certas aparições fantásticas que nada têm de real e se produzem freqüentemente na doença." (pág.101).

 

E prossegue:

 

" As imagens transmitidas ao cérebro pelos olhos deixam ali a sua impressão, que permite lembrar-se de um quadro como se ele estivesse presente, embora se trate de uma questão de memória, pois nada se vê. Ora, num estado de emancipação a alma pode ver o cérebro e nele reencontra essas imagens, sobretudo as que mais a tocaram, segundo a natureza das suas preocupações ou disposições íntimas. É assim que reencontra a impressão de cenas religiosas, diabólicas, dramáticas, mundanas, das figuras de animais bizarros que viu outrora em pintura ou ouviu em narrações, porque estas deixam também as suas impressões. Assim, a alma vê realmente, mas apenas uma imagem fotográfica no cérebro.

 

No estado normal essas imagens são fugitivas, efêmeras, porque todos as seções cerebrais funcionam livremente. Mas na doença o cérebro se enfraquece, desaparece o equilíbrio geral dos órgãos cerebrais, somente alguns se mantêm ativos enquanto outros de certa maneira são paralisados. Decorre disso permanência de certas imagens que não se esvaem, como no estado normal, com as preocupações da vida exterior. Essa a verdadeira alucinação e a causa primária das idéias fixas." (pág.101)

 

BAUDELAIRE E O FLUÍDICO

 

 

Uma questão de esclarecimento. Neste artigo os termos ‘fluídico’, ‘celestial’ e ‘umbral’ são utilizados como metáforas. O Dicionário Brasileiro Globo dá uma definição interessante de fluídico: Designativo de certos corpos ou sombras impalpáveis, mas que a fotografia reproduz". Também ajuda a definição de fluido: "Qualquer líquido ou gás." Assim, quando observamos o "fluídico" em Baudelaire, não queremos dizer com isso que o poeta forneça especificações técnicas ou conceituais, mas queremos investigar a obsessão do poeta pelo volátil, pelo etérico, que se traduz na obra pela presença de certas essências ou perfumes, como no poema I de "As Flores do Mal" denominado "Spleen e Ideal":

 

"E aqui, de joelhos, me embebedarei de incenso,

De nardo e mirra, de iguarias e licores"

 

Ou seja, a imagem que o poeta fornece ajuda a ilustrar toda a postura oscilante de Baudelaire nas "Flores do Mal". O poeta oscila entre o sagrado: "E aqui de joelhos", "mirra" (uma resina utilizada como incenso nas igrejas católicas) e o profano: "iguarias" (o pecado da gula) e "licores" (a licenciosidade moral do álcool).

 

No poema IV "Correspondências":

 

"Com a fluidez daquilo que jamais termina,

Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,

Que a glória exaltam dos sentidos e da mente."

 

 

A pergunta é: qual o fluido que jamais termina? O poeta pode estar fazendo uma alusão ao fluido universal. Com o signo "almíscar", uma secreção do corpo do veado almiscareiro há uma oscilação entre a sensualidade e a religiosidade do "incenso" e das "resinas do Oriente". Tal oscilação entre o elevado e o terra-a-terra, entre alma e corpo, também é uma característica da obra de William Blake, um poeta inglês com uma profunda e atormentada mediunidade.

 

No poema V:

"De olhar translúcido como água de corrente,

E que se entorna sobre tudo, negligente,

Tal qual o azul do céu, os pássaros e as flores,

Seus perfumes, seus cantos, seus doces calores"

 

O poeta realiza os cinco sentidos: "olhar translúcido" e "azul do céu" (visão); "as flores, seus perfumes" (olfato), "seus cantos" (audição), "seus doces" (paladar), "calores" (tato). Neste poema há uma ocorrência de sinestesia.

 

A sinestesia, segundo FARACO & MOURA, ocorre, por exemplo, em Cruz e Souza:

"E as vozes sobem claras, cantantes, luminosas"

 

Ao descrever vozes, o poeta revela que dois sentidos diferentes se cruzaram: audição e visão. Esse fenômeno chama-se sinestesia. Nela cria-se uma relação subjetiva entre duas percepções pertencentes a diferentes sentidos. Pois no subconsciente e no inconsciente, há imagens e sensações que nem sempre se associam de modo lógico; a sinestesia expressa essas associações.

 

Em Baudelaire a sinestesia ocorreu quando o poeta diz que a flor cantou, que o azul do céu tem sabor doce.

 

Outra sinestesia ocorre no poema VII "A Musa doente":

 

"Quisera eu que, vertendo o odor da exuberância"

 

Isto é, o poeta verteu, derramou um cheiro, um odor.

Nem sempre o fluídico comparece em imagens positivas ou leve, como no poema XI "O azar":

"E muita flor exala a medo

Seu perfume como um segredo

Na mais profunda solidão"

 

O poeta descreve como os fluidos impressionam sua alma em XXII "Perfume Exótico":

"Enquanto o verde aroma dos tamarineiros,

Que à beira-mar circula a inundar-me os pulmões

Confunde-se em minha alma à voz dos marinheiros"

 

Sabe-se que no Budismo a respiração assume grande importância na prática meditativa. É através dela que o sensitivo Baudelaire constrói suas imagens poéticas. Alguns cientistas detectaram que a simples inspiração mais forte de ar, em que o cérebro é irrigado com muito oxigênio, pode provocar imagens ou impressões delirantes do ambiente ao redor.

 

No poema XXIII "A cabeleira":

 

"Se espíritos vagueiam na harmonia errante,

O meu, amor! Em teu perfume flui absorto"

 

Baudelaire patenteia a existência da erraticidade. Em outro trecho:

 

"Do céu profundo dai-me a esférica amplidão;

Na trama espessa dessas mechas retorcidas

Embriago-me febril de essências confundidas

Talvez de óleo de coco, almíscar e alcatrão."

 

O autor de "As Flores do Mal" patenteia a necessidade de ascensão espiritual: "dai-me a esférica amplidão."

 

O poeta quer dividir com os leitores suas impressões em 2 "O perfume":

 

"Leitor, tens já por vezes respirado

Com embriaguez e lenta gostosura

O grão de incenso que enche uma clausura

Ou de um saquinho o almíscar entranhado?"

 

No poema XLVII:

 

"Cada flor se evapora igual a um incensório;

Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo,

Melancólica valsa e lânguida vertigem!"

 

O poeta vê o corpo sutil, a aura da flor. Só no século XX a Kirliangrafia poderia dar conta de tal fenômeno.

 

BAUDELAIRE E O CELESTIAL

 

Nesta parte do artigo veremos como o poeta francês traduz o celestial e o luminoso, isto é, os pontos altos de sua sensibilidade mediúnica, através de metáforas e imagens líricas.

 

No poema I "Spleen e Ideal":

 

"Mas nem as jóias que em Palmira reluziam,

As pérolas do mar, o mais raro diamante,

Engastados por vós, ofuscar poderiam

Este belo diadema etéreo e cintilante"

 

O poeta talvez esteja utilizando uma analogia com a aura que circunda a cabeça, tal qual os pintores pintavam uma auréola em torno da cabeça dos santos católicos. Assim, esse "diadema etéreo e cintilante" tanto pode ser a descrição da Virgem Maria, signo caro a tradição católica que permeia o lado devoto da poesia simbolista e com isso inspirado em alguma pintura bíblica medieval, ou pode ser fruto da mediunidade do poeta que flagrou a áurea de alguma mulher que amava.Pois no simbolismo, tal qual no romantismo, a mulher é divinizada e idealizada, muitas vezes associada a Mãe de Jesus, como na poesia de Cruz e Sousa.Afinal, no simbolismo o devoto e o profano andam juntos.

 

Tanto que na estrofe seguinte o poeta conclui:

 

"Pois que ela apenas será feita de luz pura"

 

Ou seja, o poeta desmaterializa a amada. Ele fluidifica, diviniza a personagem. Pois o divino é associado ao luminoso e ao puro.

 

Curioso fenômeno ocorre no poema III "Elevação":

 

"Por sobre os pantanais, os vales orvalhados,

As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,

Para além do ígneo sol e do éter que há nos ares,

Para além dos confins dos tetos estrelados,

 

Flutuas, meu espírito, ágil peregrino

E, como um nadador que nas águas afunda,

Sulcas alegremente a imensidão profunda

Com um lascivo e fluido gozo masculino"

 

Estamos diante ou não de uma descrição de desdobramento? Quem senão desdobrado, solto dos grilhões do corpo denso, poderia sobrevoar os pântanos, os vales, as montanhas, os bosques, as nuvens, os mares, o sol e os ares antes da invenção do avião? Neste poema, mais uma vez o poeta oscila entre o místico, o ascético e o sensual e o luxurioso, pois o último verso descreve um orgasmo.

 

Sabe-se que na cultura oriental sexo e misticismo, ao contrário da pudica cultura judaico-cristã, andam juntos. No tantrismo o sexo é uma forma de se conectar a Deus. E provavelmente Baudelaire teve acesso a este tipo de conhecimento, posto que a Europa visita o oriente desde o Ciclo das Navegações, trazendo na só especiarias e tecidos, mas também os valores culturais.

 

E o poeta prossegue no mesmo poema:

 

"Depois do tédio e dos desgostos e das penas

Que gravam com um peso a vida dolorosa,

Feliz daquele a quem uma asa vigorosa

Pode lançar às várzeas claras e serenas;

 

Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz,

De manhã rumo aos céus liberto se distende,

Que paira sobre a vida e sem esforço entende

A linguagem da flor e das coisas sem voz!"

 

Vemos aqui o processo de desdobramento, o eu lírico do poeta projetado nos ares. Também quando o poeta diz que "sem esforço entende/a linguagem da flor e das coisas sem voz!", flagramos um nítido EAC (Estado Alterado de Consciência), o que Castañeda chama de ´segunda atenção´ , o que possibilitaria ver o ‘nagual’, que difere do ‘tonal’, o mundo ordinário. Quando se usa a segunda atenção, atingida pelo êxtase religioso, pela meditação ou por uso de drogas alucinógenas, torna-se prosaico o hermético idioma das flores.

 

A partir do poema VI "Os faróis":

 

"Cenários leves inflamados pelos lustres

Que a insânia incitam este baile de delírios,"

 

Vamos observar o que vem a ser ‘delírio’, segundo o Dicionário Brasileiro Globo, trata-se de:

"Perturbações das faculdades intelectuais, causada por doença; excesso de sentimento; desvario; exaltação; entusiasmo".

 

Analisando a biografia de Baudelaire, não parece estranho pensar em uma sensibilidade delirante em um homem sobrecarregado de preocupações financeiras (muda constantemente de endereço para fugir dos credores), que usa alucinógenos com uma certa freqüência e que sofre dos sintomas degenerativos da sífilis.

 

Aldous Huxley em "As Portas da Percepção" relata a tênue oscilação entre o "céu" e o "inferno" de quem utiliza substâncias alucinógenas.

 

São ocorrências do celestial, do luminoso:

 

"Colherás o ouro dos cerúleos firmamentos"

 

em que o poeta materializa o volátil, ou:

 

"Um líquido céu que difunde

astros em minha alma"

 

onde o poeta condensa o ar. Assim como em:

 

"Dos céus espirituais o azul inacessível"

 

em que o poeta demonstra conhecer ou intuir a existência do plano espiritual. Porém, o poeta pode ser mais explícito como em:

 

"Súbito brilha e faz-se presente

Fantasma esplêndido e de graça extrema

Em oriental postura evanescente."

 

onde flagra uma aparição, ou seja, o poeta é vidente. Porém, mais impressionante é o poema CII "Sonho Parisiense":

 

"Babel de umbrais e colunatas,

Era um palácio ilimitado,

Cheio de fontes e cascatas

Sobre ouro fosco ou cinzelado;

E cataratas vagarosas

Como cortinas de cristal,

Se despenhavam, luminosas,

Pelas muralhas de metal"

 

em que o poeta descreve uma visita a uma colônia espiritual, onde o espaço-tempo funciona de forma diferente: "palácio ilimitado" (de tamanho infinito) e "cataratas vagarosas" (em um andamento mais lento).

 

Para encerrar esta seção, analisaremos o poema XX "A Uma Malabarense":

 

"Todos os dias, pés descalços, vais andando

E antigas árias nunca ouvidas murmurando"

 

O poeta descreve uma menina indígena que muito o impressionou numa ilha que conheceu.Se ela canta o que nunca ouviu, provavelmente este canto é uma lembrança intuída de vidas anteriores. E ele prossegue:

 

"E vendes o perfume estranho que derramas,

O olhar absorto, perscrutando entre os miasmas,

Dos coqueirais ao longe os pálidos fantasmas!"

 

O poeta descreve o estranho fluido que a menina exala de seu ectoplasma: perfumado. Esta é um tipo de mediunidade de efeitos físicos.No segundo verso há uma alusão a preferência que certos espíritos por lugares onde abundam corpos em putrefação, como cemitérios e matadouros.

 

BAUDELAIRE E O UMBRAL

 

Entendemos Baudelaire como uma espécie de antena que captava não só o belo e o luminoso, também o sombrio e o grotesco.

 

No poema VIII "A Musa Venal":

 

"No tédio negro dos crepúsculos nevoentos,

Uma brasa que esquenta os teus dois pés violáceos"

 

O poeta vai do diáfano "crepúsculos nevoentos" a imagem tétrica dos pés roxos, pés de cadáver. E prossegue:

 

"Aqueceras teus níveos ombros sonolentos

Na luz noturna que os postigos deixa coar"

 

em que os "ombros níveos" e paralisados são seguramente de um cadáver, o macabro é atenuado pela suavidade do verso seguinte.

 

De onde provêm essa sensibilidade doentia? O poeta responde no poema XLIX "O Veneno":

 

"Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio

com seu luxo prodigioso"

 

Aqui, o poeta confessa de onde vem suas imagens delirantes, assim como na estrofe seguinte:

"O ópio dilata o que contornos não tem mais,

Aprofunda o ilimitado,

Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado"

 

Ou seja, o poeta facilmente entra em EAC, isto é, perde a noção temporal-espacial através da indução química do álcool e do opiáceo.

 

O poeta patenteia a sua mediunidade doentia em várias passagens:

 

"Se move ao despertar o defunto espectral" ou em LXIII:

 

"À tua alcova hei de voltar

E junto a ti, silente vulto,

Deslizarei na sobra oculto;"

 

onde o poeta pode estar fazendo alusão à ação de um obsessor. Como em XC "Os Sete Velhos":

"Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde

O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!"

 

em que claramente Baudelaire flagra a ação de um obsessor assediando sua vítima.

 

O poeta demonstra seu sentimento pelas almas penadas em LXXV:

 

"A alma de um velho poeta erra pelo telhado" ou LXXVIII "Spleen":

 

"Os sinos dobram de repente, furibundos

E lançam contra o céu um uivo horripilante,

Como os espíritos sem pátria e vagabundos

Que se põem a gemer com voz recalcitrante"

 

o poeta registra a existência de almas errantes.

 

Vejamos como o poeta define sua mediunidade:

 

"Furioso, como um ébrio que vê dois em tudo

Entrei, fechei a porta, trêmulo e perplexo,

Transido e enfermo, o espírito confuso e mudo,

Ferido por mistérios e visões sem nexo"

 

ou em CXV "A Beatriz:

 

"Em pleno dia eu vi, sobre a minha cabeça,

Prenúncio de borrasca, uma nuvem espessa,

Trazendo um bando de demônios maliciosos,

Semelhantes a anões perversos e curiosos,

Entreolham-se a mirar-me, aguda e friamente,

E, como o povo que na rua olha um demente,

E os ouvia rir, entre si cochichando,

Piscando os olhos e também sinais trocando"

 

Ou seja, aqui o poeta descreve um nítido processo de obssediamento espiritual. Assim como, em:

"O sono engendra assombros vários!"

 

onde inferimos que o sono do poeta era bastante agitado. Sabe-se que alguns obsessores se aproveitam da noite para assediar suas vítimas.

 

Também enxergamos um nítido assediamento neste poema:

 

"Com o olhar de terror mede a extensão da escada

cuja vertigem lhe atordoa a alma abismada

 

Risos frenéticos que ecoam na prisão

Ao estranho e absurdo arrastam-lhe a razão;

A Dúvida que o cerca e o ridículo medo

O envolvem num horrendo e multiforme enredo"

 

pois uma cadeia é um lugar pouco provável de se ouvir risos, que só podem ser de origem mediúnica. E o poeta conclui:

 

"Esse gênio encerrado em calabouço infame.

Os esgares, os ais e os duendes cujo enxame

Turbilhonam por trás de seu ouvido alerta"

 

em que notamos a ação de espíritos zombeteiros, que enlouquecem sua vítima.

No poema XVII "A Voz":

 

"Dessa existência imensa, e no mais negro abismo,

Distintamente eu vejo os mundos singulares,

E, vítima do lúcido êxtase em que cismo,

Arrasto répteis a morder-me os calcanhares".

 

o poeta enxerga em EAC outros planos. Patrick Drouot no livro "O físico, o xamã e o místico" (Ed.Nova Era) descreve experiência semelhante ao tomar chá de aoasca na selva amazônica e repentinamente sentir e ver seres e animais estranhos correndo pelo chão. Como Kardec explicou na segunda seção deste artigo, alguns espíritos podem assumir formas fantásticas ou bizarras afim de impressionar ou assustar quem entra em sintonia com eles. Os psicólogos dizem que os nossos temores são exacerbados no contato com as drogas alucinógenas. Assim, quem tem fobia a aranhas, verá uma infinidade delas ao tomar uma bebida psicoativa.

 

E como não poderia faltar nesta seção, analisaremos o "satanismo" de Baudelaire no poema "Oração":

 

"Glória e louvor a ti, Satã, lá nas alturas

Do céu, onde reinaste, e nas furnas escuras

Do inferno, onde vivemos, sonhas silencioso!

Sob a Árvore da Ciência, um dia que o repouso

Minha alma encontre em ti, quando na tua testa

Seus ramos expandir qual novo templo em festa!"

 

O satanismo ou crença em Satanás é muito previsível em um autor que nasceu num país católico. O satã é um símbolo do mal à primeira vista. Mas quando investigamos mais profundamente a cultura européia, chegamos a conclusão de que o Satã simboliza tudo o que é rebelde, divergente, dissidente. Sabe-se, por exemplo, que existiu um jornal anarquista chamado "Lúcifer", pois segundo eles isso era uma referência ao ser que primeiro desafiou a autoridade, o poder, o status quo. Baudelaire tinha relações com os anarquistas e até participou das barricadas da Comuna de Paris, mas sem maiores envolvimentos. Entretanto, Baudelaire parece acreditar na existência do príncipe das trevas. E tal crença deve ter sido utilizada por alguns espíritos obsessores que se apresentaram ao poeta revestidos de chifres e toda a parafernália típica.

 

Pensamos que se o poeta tivesse se aprofundado na Doutrina Espírita – e o poeta deve ter tido, pelo menos, um contato superficial com ela por morar no mesmo país onde Kardec codificou a doutrina- talvez a crença no Satã não existiria e provavelmente o poeta poderia educar sua mediunidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Foi nosso objetivo neste artigo, rastrear as ocorrências mediúnicas na poesia de Charles Baudelaire e criar uma classificação possível a partir do material colhido. Pensamos que não existe uma bibliografia nas lides espíritas que dê conta consistentemente do fenômeno. Aliás, os autores espíritas raramente se interessam por crítica literária. Foi intenção nossa, portanto, começar um trabalho que poderia vislumbrar o mediúnico em outros escritores como Goethe, Dante, Fernando Pessoa, William Blake, Augusto dos Anjos, entre outros.

 

Mestrando em Letras pela UFC e neo-espírita.

charlesodevan@bol.com