Artigo de Charles Odevan Xavier - Outubro de 2001

Por quê os Espíritas Discriminam a Umbanda ?

Sempre chamou-me atenção aquele conhecido medo que os espíritas têm de serem confundidos com umbandistas. A participação incomodada de espectadores espíritas no Programa “Fala que Eu te Escuto” da Universal - em que esta sempre associa a palavra ‘espiritismo’ com imagens de cultos afro-brasileiros – é o indício muito revelador dessa melindrosa necessidade de demarcação de território, em meio as provocações baratas das religiões cristãs.O primeiro registro que me dei conta do tratamento pejorativo dado por espíritas às religiões afro-brasileiras, está no livro “O que é Umbanda”(Ed.Brasiliense, 1985) da antropóloga Patrícia Birman. A partir desse livro, tentei resgatar a origem do possível preconceito e fui encontrá-lo no próprio Kardec de “O livro dos espíritos” e “Céu e Inferno”. Lá ele pergunta se uma criança hotentote poderia chegar a ser um Newton, um Laplace. A pergunta do codificador implica uma noção de superioridade e inferioridade. Ou seja, Newton e Laplace seriam superiores na escala evolutiva por serem cientistas, e o hotentote, inferior, por viver na selva. Em outras passagens, Kardec faz enumerações, colocando lado a lado: imbecis, retardados e selvagens (índios).

O que há por trás dessas comparações? Que crenças silenciosas estão incutidas nesses enunciados ? Kardec, não podemos perder de vista, foi um homem de uma determinada época, cheia de parâmetros etnocêntricos, calcados no Positivismo de Comte e no evolucionismo de Darwin. Do positivismo, Kardec conservou o cientificismo (a ciência explica tudo) e do evolucionismo, o gosto por comparações valorativas entre etnias.Darwin, financiado pela coroa britânica, criou a teoria da seleção natural das espécies, para legitimar o caráter predatório e competitivo do capitalismo, que em última instância o patrocinava. O produto dessa teoria foi ter posto o homem branco europeu como modelo de perfeição a ser seguido. O livro “O que é Darwinismo”  (Col. Primeiros Passos, Ed.Brasiliense) oferece vários argumentos confirmando isto.Quando perguntei ao José Queid sobre o receio da confusão entre espiritismo e umbanda, ele respondeu por e-mail que os valores da civilização européia deveriam ser seguidos por todos os povos. Ou seja, a Globalização e o colonialismo europeu têm no Sr. José Queid um fervoroso representante.As sociedades tribais, vistas como atrasadas por Darwin, Kardec, Queid e Jaci Régis, foram descritas como ‘sociedades da abundância’ pela sociologia mais recente. Ou seja, terra e alimento para todos e respeito à criança e ao idoso.E a civilização branca tão superior e evoluída dos tempos de Darwin e Kardec? Caos urbanístico, longas jornadas de trabalho, baixos salários, mutilações em máquinas, desigualdade social, trabalho infantil semi-escravo, poluição, violência e nenhuma seguridade social ao idoso.O que há de comum entre a Umbanda e o Espiritismo? O fato de que ambas são religiões assumidamente mediúnicas – o mesmo não ocorre com o Pentecostalismo, que apesar do Espírito Santo (seja lá o que isso for!) supostamente baixar nos seus adeptos histéricos, eles rejeitam o termo ‘mediunidade’. Mas a semelhança para por aí.  Nem se pode dizer que ambas religiões sejam reencarnacionistas. Há divergências quanto a isto, porque alguns centros de umbanda são cruzados com o Cristianismo (uma religião ressurrecionista) e até com o Islamismo,sem falar na mescla de Animismo e Panteísmo, devido a influência do Candomblé. O que mostra o temido ecletismo epistêmico da Umbanda. Outro problema da Umbanda é a ausência de uma doutrina escrita padronizada. A umbanda é uma religião ágrafa de tradição oral. E isso no Kardecismo, uma religião elitista da classe média letrada, é mal visto. Também, não é bem quisto, pelos espíritas, a africanização da Umbanda (roupas coloridas, atabaques, sacrifícios de animais).

O que originou, segundo Birman, a umbamda Cristã de Zélio de Morais, que exigia, entre outras coisas, a presença de pessoas cultas capazes de receber espíritos elevados (leia-se médicos, advogados) e a rejeição a presença de espíritos atrasados, geralmente constituídos por escravos analfabetos desencarnados.Outro aspecto levado em conta é a questão da bizarria dos cultos tribais. Mas penso que a bizarria não é só uma marca da Umbanda . Para que coisa mais bizarra do que uma religião que tem como símbolo um moribundo pregado numa cruz? Para não falar das bizarras atrocidades cometidas pelo clero e pela nobreza contra os povos indígenas da América latina. Ou pelo saqueamento da África pelas metrópoles cristã. Ou ainda, por que não falar dos grotescos sopões levados esporadicamente pelas casas espíritas para as favelas, como se estas se contentassem com esmolas de uma pequena burguesia com consciência pesada ? Este artigo surge num momento em que os povos africanos exigem uma indenização aos povos cristãos, por meio milênio de escravidão e humilhações, na conferência mundial sobre racismo da ONU realizada na África do Sul.

charlesodevan@bol.com.br

Graduação em Letras-UFC e neo-espírita