Artigo de Charles Odevan Xavier - Fevereiro de 2002

Espiritismo: Teísta ou Deísta ?

A resposta para a questão é muito complexa, pois implica a conceituação de Deus pela Doutrina Espírita. Mas antes de entrar nos meandros da questão, cabe partir das reflexões de Marcelo Gleiser no livro ?A Dança do Universo: dos mitos de criação ao Big Bang?(São Paulo: Companhia das Letras, 1997) em torno da polarização entre a concepção teísta e deísta de Deus: ?Qual poderia ser o papel do Criador em um Universo regido pelas leis da mecânica? Segundo Newton, a presença contínua de Deus assegurava a estabilidade de um universo infinito. Essa era a posição dos teístas, que atribuíam a Deus a dupla função de criador de todas as coisas e também de ?mecânico?, consertando coisas aqui e ali conforme a demanda.. Leibniz sarcasticamente comentou que o Deus newtoniano era ineficiente, já que Ele tinha de interferir constantemente em sua criação. Um Deus mais eficiente teria criado um Universo auto-suficiente, capaz de auto-regular-se através de seus próprios mecanismos internos". Definido o Teísmo, vejamos como o físico Marcelo Gleiser define o Deísmo no livro citado: "(...)Bombardeados por argumentos dessa natureza, o Deus dos teístas foi sendo aos poucos substituído pelo Deus "relojoeiro" dos deístas, o qual, após criar o Universo, deixa-o evoluir sob o controle das leis da Física, tal como um relógio funcionando sob a ação de seus próprios mecanismos. Os Deístas forjaram um compromisso entre a crença em Deus e a tradição racionalista vinda do Iluminismo. Deus é a primeira causa e o criador das leis imutáveis e universais que regem o comportamento do Universo, que podem ser descobertas através do estudo científico da Natureza. Já que Deus não interfere ativamente no mundo, os deístas não aceitavam a existência de milagres. O que existe de sobrenatural no Universo é relegado a o mistério de sua criação e à concepção divina das leis que controlam sua evolução. As leis da Física são criadas por Deus, e a função do cientista é desvendá-las". Em linhas gerais, temos até aqui duas concepções: o Deus mecânico e o Deus relojoeiro. Vejamos a definição de Deus segundo Allan Kardec no Cap.II pág.47 do Livro "A Gênese; os milagres e as predições segundo o espiritismo" (Araras:IDE, 1 edição, 1992): "Sendo Deus a causa primeira de todas as coisas, o ponto de partida de tudo, o eixo sobre o qual repousa o edifício da criação, é o ponto que importa considerar antes de tudo". O que podemos depreender dessa definição? Que Kardec tem uma visão impessoal de Deus. Tanto que no "Livro dos Espíritos" ele pergunta o que é Deus e não quem é Deus. Não estou sozinho nessa inferência, José Herculano Pires no seu "Introdução à Filosofia Espírita"( 2 edição. São Paulo: FEESP, 1993) conclui algo semelhante ao dizer; "(...) a Fé em Deus, a confiança interna, intuitiva, no seu poder e na sua providência, não como uma entidade pessoal, antropomórfica, mas como a 'intuição de um presença e a identificação a essa presença', segundo a expressão de Hubert". Kardec usa de uma analogia que aproxima sua definição das concepções da Física: Deus como eixo sobre o qual repousa o edifício da criação. No entanto, a dúvida ainda permanece, Deus é "mecânico" o "relojoeiro"? Atributos que agora se configuram metafóricos, posto que Deus é impessoal e um mecânico ou relojoeiro são pessoas. Para desfazer esse impasse, vamos checar a noção espírita de Providencia Divina. Sendo Deus o começo de tudo, a origem das coisas., como ele atua no universo e nas nossas vidas? Kardec esclarece na Gênese: "A Providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Deus está por toda parte e tudo vê, tudo preside, mesmo às menores coisas; é nisso que consiste a ação providencial". Como Deus se manifesta? Segundo Kardec através do fluido inteligente universal, produto de Deus que atravessa e liga todos os elementos do Universo, inclusive as consciências humanas. O fluído universal, possui o pensamento, os atributos essenciais da Divindade, e esse fluido estando por toda parte - tal qual a "weird", uma espécie de teia de aranha invisível dos povos celtas - tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude; não há um ser, por ínfimo que se suponha, que dele não esteja de algum modo saturado. Conclui Kardec que " estamos assim constantemente em presença da Divindade; não há uma única das nossas ações que possamos subtrair ao seu olhar, o nosso pensamento está em contato com o seu pensamento." Ficando claro que o olhar de Deus aqui, é uma metáfora, sendo Ele impessoal. Para Kardec, Deus não tem necessidade de mergulhar seu olhar do alto da imensidade, pois as nossas preces, para serem ouvidas por Ele, não têm necessidade de cortarem o espaço, nem de serem ditas com voz retumbante, porque, incessantemente ao nosso lado, os pensamentos repercutem nele tal qual aos sons de um sino, que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente. Pelo dito, a prece praticada nas casas espíritas reformistas e rostanguistas é um vazio exercício de redundância ou exibicionismo, porque através eles se dirigem a Deus, quando o mesmo já sabe antecipadamente do conteúdo de seus pedidos. Para que invocar Deus, se Este está em toda parte? A resposta está dentro e fora de nossa civilização ocidental. O homem ocidental, ao contrário do oriental e do homem tribal, leva uma vida alienada, onde vê tudo de forma separada. Trabalho, Deus, Arte, tudo alienado em esferas separadas, em espaços demarcados. Assim, ao contrário do homem tribal, por exemplo, tem hora e local para trabalhar, para cultivar a espiritualidade e para cuidar da subjetividade artística. Os raja-yogues, por sua vez, vivem conectados a Deus integralmente, em todas as horas do dia e fazendo o que for: trabalhando, amando, pintando um quadro, cuidando de um jardim, estudando, enfim, em qualquer atividade Deus está realmente presente e a ele são dedicados os afazeres, sejam prazerosos ou cansativos. O homem ocidental, o espírita incluído nessa categoria, como é um homem alienado, só pensa em Deus dentro do templo de sua devoção ou da casa espírita, pois lá e que foi o local instituído para se ocupar com Deus. Na prática, terminada a sessão ou o culto, o homem ocidental pode voltar a sua vida normal de constantes infrações as leis divinas, podendo, inclusive, caso seja um homem de posses, explorar seus empregados, posto que a empresa não é um lugar reservado a Deus, mas ao outro deus, com "d" minúsculo: o lucro, o dinheiro. O Espiritismo é teísta ou deísta? Em A Gênese, na pág. 49, Kardec dá uma pista quando tentando provar a existência de Deus diz: "A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro, a engenhosidade do mecanismo atesta a inteligência e o saber do relojoeiro". Portanto, está implícito o Deísmo na Doutrina Espírita.

Graduação em Letras-UFC e Neo-espírita.
charlesodevan@bol.com.br