Artigo de Jaci Régis - Janeiro / Fevereiro de 2002

A Religião segundo Freud, Jung e Kardec

O professor Michael Palmer, da Escola de Teologia da Westminster College, de Oxford, Inglaterra, publicou um livro sobre as posições de Freud e Jung acerca da religião, Freud e Jung - Sobre Religião. Publicado no Brasil pela Edições Loyola, reúne palestras que o professor fez sobre o tema.Segundo Palmer, para Freud a religião é uma neurose obsessiva de fundo infantil. O fundador da Psicanálise fundamenta seu ponto de vista sobre sua teoria da horda primitiva, na qual o pai ficava com todas as fêmeas e afastava os filhos. Estes, por fim, resolveram matar o pai, mas se arrependeram. Freud assinala aí o início da civilização, com a transformação do pai no totem tribal.Logo, para Freud, a religião, nasceu do culto e do temor ao pai.Já Jung tem outra teoria. Para ele, a religião é um processo arquetípico. O psicólogo suíço postulou a existência do "inconsciente coletivo", que seria uma instância eterna, a priori, que todos teriam, mas que extrapola a pessoa. Seria, para uma compreensão mais fácil, uma espécie de DNA psicológico que estaria na mente de todos e que criaria pressões psicológicas irresistíveis, embora de forma variada. Então, diz Jung, a religião se impõe psicologicamente e pertence ao nível arquetípico. Isto é, existe, a despeito da pessoa. Enquanto Freud é objetivo e direto, Jung é complicado e prolixo. Se a teoria da horda selvagem sofre sérias contestações, o inconsciente coletivo de Jung não encontra raízes positivas. Mas este, no desenvolvimento de sua teoria, admite a existência de um "Deus interno" que, todavia, não significa a existência de um Ser criador, autônomo, como postulam as religiões.Palmer critica as duas posições:"O foco do ataque de Freud foi a crença na realidade objetiva de Deus: a crença de que há de fato um Pai transcendente, vivo, concreto e personificado, que existe fora da psique e se revela a nós por meio das imagens e dos rituais da religião. A resposta de Freud foi converter as afirmações metafísicas da religião em metapsicologia, e fazer isso por meio do desmascaramento dessas e imagens, e desses rituais como nada além de produtos psíquicos, como as projeções, para o exterior, de nossos próprios desejos edipianos e obsessivos". Em réplica a Freud, Jung diz que "Não se pode saber coisa alguma de um Deus objetivo, não havendo, portanto questão metafísica sobre se existe um tal Ser a que se quer dar resposta. Em conseqüência, ele dirige a nossa atenção exclusivamente para o produto psíquico, para a imagem de Deus interior à psique, agora avaliada não como uma fantasia, mas como subtrato coletivo e arquetípico do inconsciente". Contribuição Para a RealidadeTanto a posição de Freud, negando Deus, como a de Jung criando um Deus interior, não tiveram qualquer influência na opinião pública. Suas teorias alcançam um número de intelectuais e psicólogos, sem exercer pressão modificadora na crença da maioria.Segundo se diz, existem cerca de 56.000 formas religiosas no mundo atual. Seja qual for a causa do surgimento desse sentimento religioso, o culto do pai (todas as religiões cultivam o Pai) totêmico de Freud ou uma forma não definida de culto no interior de cada pessoa, pressionada pelo inconsciente coletivo de Jung, não se pode negar que ele sempre esteve presente nas coletividades humanas, desde as mais primitivas até hoje em diaIsso não significa que a religião seja, como se propaga, um intermediário entre o ser e o criador, mas um culto medroso talvez criado pelo medo e a insegurança diante das forças da natureza, pois o Deus primitivo sempre esteve ligado aos fatores naturais.No século 21, que começa, permanece a insegurança existencial, acrescida pelas variações políticas, econômicas e da inserção de bilhões de pessoas na realidade sóciopolítica, criando um universo de comunicação e inter-relações jamais sonhadas.Permanece o mistério desse poder divino, razão para que milhões, bilhões, reverenciem-no de formas as mais diversas, pedindo misericórdia. Mais recentemente, uma versão oportunista de religião verteu o interesse das pessoas na obtenção de bens imediatos e não mais a passagem para o céu, depois da morte. O esquema é simples. O poder divino (Jesus) pode tudo. Se você aderir a esse poder (Jesus) ele providenciará recursos para seu bem-estar aqui na Terra.Por outro lado, a Igreja Católica, com seu poder e aparato sobreviventes, mantém-se na mesma posição paquidérmica em relação ao progresso das idéias. O que se justifica, pois uma das características da religião é o imobilismo conceitual. Se é uma revelação divina e Deus não pode desmentir-se, porque é perfeito, ceder ao progresso é desmoralizar-se.Não quer dizer que a religião deva acoplar-se ao pensamento científico ou mesmo filosófico. Ela é uma forma de pensar magicamente a vida. Sua alternativa é manter-se fiel aos seus princípios ou morrer. O Mito da Religião RacionalAllan Kardec não podia acoplar o Espiritismo à religião. Se ele queria um Espiritismo progressista, não tinha porque transformá-lo numa religião, que é imobilista. Aliás, desde a primeira hora, o fundador da Doutrina jamais pensou nela como uma religião. Disse-o várias vezes e quem conhece a estrutura do Espiritismo verificará que ele não tem qualquer das características que definem uma religião.Aqui no Brasil criou-se o mito de que seria possível racionalizar a religião. Inventou-se o triângulo ciência-filosofia-religião, excludente entre si. O critério científico baseia-se na possibilidade do falseamento das afirmativas da ciência, o que não se pode aplicar à religião. Aliás, esse triângulo é um engodo, porque seu mais imediato formulador, o Espírito Emmanuel, ao expô-lo, logo enfatizou que a religião era o mais importante, tirando o equilíbrio do esquema, dando funções diferentes aos lados do triângulo.Paralelamente ao Espiritismo, o Positivismo, de Augusto Comte, também tentou criar uma religião racional, laica e fracassou.A criação da religião espírita não foi a mais criativa. Na verdade, copiou todas as posições das religiões cristãs.Existe uma contradição no uso das palavras e princípios espíritas kardecistas e os usados pela religião espírita. É fácil enumerar essas contradições. (veja quadro ao lado)Cremos que esse quadro, que não é, certamente, conclusivo, mostra as diferentes formas como o pensamento de Kardec se transforma ao se tornar religioso, contrariando seu idealizador.É Possível Viver Sem Religião?Embora o princípio do inconsciente coletivo de Jung não possa ser objetivamente provado, é fora de dúvida que o culto à divindade, qualquer que seja sua forma, é básico na formação de todas as civilizações. A proposta freudiana do pai totêmico não pode ser aceita, sob o ponto de vista kardecista, porque é restrita e circunscrita ao processo evolutivo do ser humano na Terra, enquanto que o Espiritismo postula uma visão muito mais ampla para o exercício vivencial. Os Espíritos que ajudaram Kardec na formulação dos princípios espíritas acreditavam que o fato de a idéia de um deus, de um ser superior, bom ou mau, estar presente nas civilizações mais primitivas seria uma prova da existência de Deus.Allan Kardec, no discurso de 2 de novembro de 1868, afirma que o Espiritismo "simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral".Já, anteriormente, na resposta ao Abade Chesnel, Kardec refuta o prelado dizendo que era "fácil" provar que o Espiritismo não era religião. E à alegação de que pelo fato dos espíritas orarem a Deus em suas reuniões, daria a ele um caráter religioso, diz Kardec: "Que prova isso? que não somos ateus. Mas de modo algum implica que sejamos adeptos de uma religião". (Revista Espírita - 1859).Concluindo, pode-se dizer que a crença em Deus e o exercício da prece não têm, necessariamente, um cunho religioso. Que podemos crer em Deus, ter um código ético e uma visão ampliada da vida e do universo fundamentada no Espiritismo: "simplesmente uma filosofia e moral".

Quadro

PRINCÍPIO ENTENDIMENTO KARDECISTA 

ENTENDIMENTO DA RELIGIÃO ESPÍRITA

Deus

Causa primária e Inteligência suprema

 Deus antropolmórfico

Jesus

Modelo de aperfeiçoamento

Salvador, governador do mundo.

Lei da evolução

  Processo progressivo, lento e continuado  de crescimento do ser espiritual, sob certos aspectos, atemporal.

Processo de auto aperfeiçoamento baseado na evangelizaçào

Reencarnação

Instrumento da evolução

Forma de punir, regenerar e saldar dívidas com a divindade e com o próximo.

Dor

Forma peculiar de conflito interno e externo pode ser instrumento de reflexão

Instrumento único da evolução. Só por ela é que a pessoa evolui para modificar o caráter.

Mediunidade

Fenômeno natural, instrumento de comunicação entre dois mundos,abertura para prova da imortalidade

Instrumento de educação e orientação dos encarnados pelos desencarnados, forma de cura e remediar sofrimentos, porta de consolações ou de exposição de sofrimento dos "mortos "

Obsessão

Atuação de Espíritos maus sobre os encarnados que se sintonizam com eles, em vários tipos de intensidade.

Mal da civilização. Invasão dos Espíritos inferiores para perder as criaturas. Praticamente todos seriam obsediados. A cura está na evangelização.

Prece

Respeitável forma de elevação do Espírito, na comunhão com o poder divino e com a humanidade.Exprime o equilíbrio do ser, na forma de pedir, agradecer o poder divino.

Uma forma santificada de autocontrole, de proteção contra o mau e obter recursos divinos, na visão de que este se manifesta magicamente e discriminatóriamente em relação às criaturas.

         Cremos que esse quadro, que não é, certamente, conclusivo, mostra as diferentes formas como o pensamento de Kardec se transforma ao se tornar religioso, contrariando seu idealizador.