Artigo de Eugênio Lara - Janeiro / Fevereiro de 2002

O Crescimento do Movimento Evangélico: Haverá Espaço para o Espiritismo ?

O Espiritismo deve disputar espaço com omovimento evangélico? O crescimento dessesegmento pode trazer algum tipo de prejuízoao crescimento das pessoas? São algumasquestões que esse artigo procura responder.

Essa questão, colocada em um debate promovido pelo Instituto Cultural Kardecista de Santos, é pertinente. Não há dúvidas de que há um crescimento do movimento evangélico. Que temos nós kardecistas a ver com isso? Teríamos vez nesse contexto religioso, na medida em que esse segmento vem ocupando espaços em todos os campos da sociedade, notadamente na mídia, em especial, a televisiva? Essa penetração, muitas vezes insidiosa, pode trazer prejuízos para um projeto de sociedade fundamentada nos princípios de solidariedade, fraternidade e igualdade de condições para todas as pessoas? As liberdades individuais serão preservadas? No nível político, a sociedade brasileira terá a perder ou a lucrar com essa impregnação evangélica?Antes de tentar responder a essas questões, torna-se imprescindível uma análise desse movimento. Quando surgiu? Como se caracteriza?O movimento, que hora chamamos de evangélico, nos estudos sociais é chamado de movimento protestante. O protestantismo surgiu com Lutero, na Alemanha e, posteriormente, teve uma outra abordagem com Calvino, na França. Isso ocorreu no século 16.Tudo começou quando o clérigo Martinho Lutero se indignou com algumas práticas da Igreja Católica, especialmente a venda de indulgências, que consistiam na doação de bens materiais à Igreja, a fim de se garantir um lugar no paraíso. Muitas doações foram feitas, tanto dos mais pobres como dos mais abastados. Por trás desse beneplácito da Igreja Romana estava a real intenção de se angariar recursos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma, na Itália.Lutero entrou em rota de colisão com a Igreja, foi excomungado e decidiu fundar outro movimento, o protestantismo, que se tornou conhecido como A Reforma.Hoje, o protestantismo se divide basicamente em três categorias: o protestantismo histórico, o pentecostal e o paraprotestante. Protestantismo HistóricoIgreja Luterana – Movimento cristão surgido com a Reforma Protestante, iniciada no século 16 pelo teólogo alemão Martinho Lutero, que rompe com a Igreja Católica. As críticas de Lutero ao catolicismo começam em 1517. Ele defendia a fé como o elemento fundamental para a salvação do indivíduo. Condena a venda de indulgências pela Igreja e as mordomias do clero. Fixa na porta da igreja do Castelo de Wittenberg as 95 teses consideradas heréticas. Em 1519, Lutero afasta-se definitivamente do catolicismo ao negar o primado do papa. Dois anos depois é excomungado pelo papa Leão X. Lutero traduz a Bíblia para o alemão e abole a confissão obrigatória, o culto aos santos, o jejum e o celibato clerical. Para ele, somente os sacramentos do batismo e da eucaristia tinham validade. Foram também chamados pejorativamente de iconoclastas, o popular "quebra-santo". Os luteranos negam ainda o culto à Virgem Maria. O nome protestante tem a ver com os partidários da Reforma, que protestavam contra a Dieta (assembléia convocada pelos reis) de Espira (1529), daí o nome.Igreja Presbiteriana – Fundada pelo escocês John Knox (1514-1572), seus princípios fundamentais foram estabelecidos na Confissão de Fé de Westminster, em 1643. Não reconhece a autoridade dos bispos nem a hierarquia superior à dos presbíteros (sacerdotes). Defende a doutrina do teólogo francês João Calvino (1509-1564), fundador de uma facção do protestantismo. Calvino afirma o dogma da predestinação, segundo o qual o homem está destinado à salvação. Salva-se quem santificar a vida cumprindo seus deveres. Defende a separação de Igreja e Estado, enfatiza a leitura e a interpretação da Bíblia e, como Lutero, admite os sacramentos do batismo e da eucaristia. Assume uma postura mais liberal em relação aos preceitos bíblicos, incentiva a busca do conforto pelo trabalho e da vida regrada.Igreja Anglicana – Igreja fundada pelo rei inglês Henrique VIII, que rompe com a Igreja Católica (1534), por não ter referendado a sua sucessão de divórcios. Teve seis esposas. A ruptura anglicana consolida-se em 1558 no reinado de Elizabeth I. Da Inglaterra se difunde para as colônias inglesas, notadamente os EUA e Canadá. Guarda semelhanças com a liturgia católica. Desde 1994 admite sacerdotes do sexo feminino.Igreja Batista – Foi firmada em Londres (1611), a partir de um grupo de luteranos liderados por Thomas Helwys (1550-1616). Preconiza o sacramento do batismo somente na idade adulta. Para os batistas, a salvação se dá pela fé, pelo batismo e não pelas obras. Difundiu-se principalmente nos EUA. Metodista – Criada em 1740, a partir da obra do clérigo anglicano John Wesley (1703-1791), possui grande influência calvinista. O nome metodista surgiu a partir de reuniões metódicas para o exercício da meditação mística. Ao contrário da Batista, os metodistas aceitam o batismo simbólico das crianças. Acreditam na cura divina e na manifestação do Espírito Santo. Protestantismo PentecostalSurgiu em Chicago, EUA (1906), de uma dissidência dos metodistas. Preconiza o intercâmbio com o Espírito Santo por meio do chamado "dom de línguas", semelhante ao episódio de Pentecostes, narrado no Novo Testamento. Os cultos são bem teatrais, apelam para a emotividade, através de orações coletivas em voz alta, nos rituais de exorcismo e cura. As igrejas, independentes, têm grande penetração nos EUA e na América Latina. Há duas facções: o pentecostalismo tradicional e o neopentecostalismo. Pentecostalismo Tradicional – Pregam uma moral rígida quanto ao comportamento, modo de se vestir, de falar. As mulheres usam saias compridas, cabelos longos e são proibidas de usar maquiagem. Combatem a televisão, o consumo de bebidas, cigarros e fazem restrições a determinados alimentos. As igrejas mais conhecidas são a Congregação Cristã, Assembléia de Deus e o Evangelho Quadrangular. Neopentecostalismo – Movimento surgido nos anos 70, a partir da chamada Teologia da Prosperidade, desenvolvida nos EUA, e que consiste na busca do sucesso nessa própria vida. São mais liberais em relação ao comportamento, promovem curas e exorcismo. A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por Edir Macedo (1977), é o maior expoente desse movimento que tem sido exportado do Brasil para outros países.ParaprotestantesConstituem uma singular facção do movimento evangélico. As principais Igrejas são a Adventista, a Mórmon e a Testemunhas de Jeová. Igreja Adventista – Criada nos EUA por William Miller (1782-1849), que anunciava a volta de Cristo à Terra em 1844. A profecia não se realizou e mesmo assim o movimento prosseguiu. Divide-se em vários ramos, como Cristãos Adventistas União da Vida e Advento e Adventistas do Sétimo Dia, que consideram o sábado dia sagrado. Os adventistas são milenaristas, acreditam na volta do Cristo e que os mortos dormem até a ressurreição. Igreja Mórmon – Movimento de características milenaristas fundado pelo norte-americano Joseph Smith, em 1830. Escreveu O Livro de Mórmon, que teria sido recebido por ele a partir da tradução de placas de ouro, sob inspiração do anjo Moroni. Os mórmons foram muito perseguidos por terem sido adeptos da poligamia, no início do movimento. É também chamada de Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos DiasTestemunhas de Jeová – Fundada em 1875 pelo norte-americano Charles Russel (1852-1916), a partir de uma dissidência da Igreja Adventista. Rejeitam as noções de imortalidade da alma e de inferno, são contra a transfusão de sangue e acreditam que religião e governo são criações do diabo. Defendem uma moral rígida e recusam-se a prestar o serviço militar. Seus locais de encontro se chamam salões do reino.No Brasil, a facção evangélica que tem tido maior penetração é a Igreja Universal do Reino de Deus, criada em 1977 pelo Bispo Edir Macedo. Tem mais de 3 mil templos em todo o Brasil e em mais de 70 países, inclusive nos EUA e Portugal. A Igreja Universal possui uma grande rede de comunicação que inclui rádios, jornais e uma cadeia nacional de televisão. Segundo os sociólogos, é um dos maiores fenômenos sociais brasileiros do final do século passado. Foram os primeiros a se autodenominarem evangélicos, em substituição ao pejorativo termo "crente". "Cristo é o Senhor" é o jargão que sintetiza a sua fé. A única imagem que adotam é a cruz.Calcula-se que existam cerca de 737 milhões de protestantes em todo o mundo. O Brasil reúne o maior número de adeptos da América do Sul, 13,3 milhões, segundo pesquisa realizada pelo instituto DataFolha em 1994. Todas as igrejas protestantes celebram o Natal, Páscoa, Pentecostes e as demais festividades cristãs. Também há comemorações particulares, como o Dia de Ação de Graças, celebrado pelos luteranos, e o Dia da Escola Dominical, comemorado pelos metodistas. Protestantismo Pós-ModernoO candidato à presidência, Antonio Garotinho, governador do Rio de Janeiro, é hoje um dos maiores expoentes do movimento evangélico na política. Tem o apoio quase integral desse movimento, que se constitui num grande contingente de eleitores. A bancada evangélica, a partir dos anos 80, conseguiu várias concessões de canais de TV, rádio e verbas para atividades assistenciais.O crescimento das igrejas evangélicas é surpreendente. Além da Igreja Universal do Reino de Deus, que tem a concessão da TV Record, a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, fundada em 1992, é uma das igrejas que mais tem atraído adeptos dos mais variados segmentos, notadamente entre pessoas famosas, como o jogador de futebol Marcelinho Carioca, a modelo e apresentadora Monique Evans, o deputado federal Paulo Otávio e a cantora Baby do Brasil, a ex-Baby Consuelo e ex-vocalista do legendário grupo Novos Baianos. A Igreja possui cerca de 100 mil fiéis em todo o Brasil num espaço de apenas 9 anos, com 300 templos em vários Estados, atingindo segmentos da classe média, onde essas igrejas sempre tiveram um fraco desempenho. Quase metade de seus seguidores é de classe média. O fundador da Igreja, Robson Lemos Rodovalho, abandonou a cátedra de física na universidade para entregar-se a Cristo. Essa igreja seduz através do apelo místico, como todas as outras, mas com maior tolerância em relação ao vestuário e ao comportamento. Homossexuais não são obrigados a mudarem sua postura. Até há pouco tempo a modelo Monique Evans disputava espaço com a cantora Gretchen como a Rainha do Bumbum, contando com muita simpatia entre os gays e travestis. Eles possuem templos em todo o País, nos EUA, Bolívia, Portugal e Paraguai.Os jovens participam do culto ao som de música tecno e rock. Possuem um templo em Brasília no valor de 4 milhões de dólares, que comporta 5.000 pessoas.O cantor Rodolfo (ex-Raimundos), Gretchen, Dedé Santana (dos Trapalhões), Cristina Mortágua e muitos jogadores de futebol, que compõem o segmento Atletas de Cristo, fazem parte do grande contingente de fiéis famosos.O avanço do movimento evangélico, de características pentecostais, pode incluir, em um sentido mais abrangente, o movimento carismático surgido no interior da Igreja Católica, como uma resposta do catolicismo ao que poderíamos chamar de protestantismo pós-moderno.A Reação EspíritaNo Espiritismo brasileiro, o movimento A Reforma, surgido em meados da década de 80, pode ser considerado uma resposta dos espíritas cristãos ao crescimento vertiginoso dos movimentos evangélico e carismático. Criado por Quaid Tufaili Haixan, de São José do Rio Preto, esse segmento prega o retorno a Kardec, mas com uma roupagem cristã e evangélica. Pode-se dizer que esse movimento se constitui num segmento radical do evangelismo espírita, ao combater o roustainguismo ao mesmo tempo em que combate o seu oposto que é o chamado movimento não-religioso, os "laicos", como eles costumam dizer. A Voz do Espírito, nome do periódico e do site deste movimento, é o seu órgão de divulgação.Existem cerca de 12 milhões de espíritas em todo o mundo segundo a Enciclopédia Britânica (dados de 1998). Segundo o IBGE os espíritas constituem cerca de 4% da população brasileira (de 170 milhões), mais ou menos 6.800 milhões de adeptos. Mas não há unanimidade ainda acerca desta informação. No Censo de 1991 havia pouco mais de 1 milhão e seiscentos mil espíritas.O DataFolha realizou uma pesquisa em 1994 e chegou ao número de 5,5 milhões de espíritas no Brasil.De acordo com a Federação Espírita Brasileira, são 8 milhões de adeptos e 30 milhões de simpatizantes. Pesquisas de opinião pública indicam um número menor: 3% da população, ou 4,8 milhões de pessoas. Mas essas são apenas as que se declaram espíritas ao pé da letra. Não estão incluídos aí todos os freqüentadores de centros, muito menos o total de simpatizantes. Cinco anos atrás havia 5.500 centros espíritas espalhados pelo País (concentrados nas regiões Sul e Sudeste). Hoje, são mais de 9.000. A Federação Espírita de São Paulo (Feesp) recebe cerca de 11.300 alunos para aprender, desde os fundamentos do Espiritismo, mediunidade, até noções de oratória e exposição de temas doutrinários. Há dez anos, eram menos de 6.000.Considerações FinaisO Espiritismo não disputa ou, pelo menos, não deveria disputar espaço com o cristianismo. Cada qual nada em raia própria. Por ser uma corrente de pensamento laica, a Doutrina Espírita segue o caminho filosófico e científico, com amplos desdobramentos no campo da ética, dos valores. O cristianismo é uma confissão religiosa. Fundamenta-se em dogmas, sacramentos, interpretações de textos sagrados (a Bíblia). Trata-se de uma revelação, no sentido religioso. A filosofia kardecista não tem nada a ver com isso.O crescimento do movimento evangélico, uma facção do cristianismo, é um sinal dos tempos, ou seja, em toda passagem de milênio, seitas e correntes de fanáticos intentam em tomar conta da consciência das pessoas. O materialismo extremo e hedonista deixa um vazio que as religiões cristãs, no Ocidente, procuram preencher. Enquanto que no Oriente, vemos o grande crescimento do Islamismo, notadamente do fundamentalismo maometano, que tem servido como perniciosa inspiração para o terrorismo.Se considerarmos que temos, diante de uma idéia a ser "vendida", um mercado de consciências apto ou não para consumi-la, e que num mundo globalizado como o nosso, onde as idéias tendem a fluir livremente, posturas dogmáticas e intolerantes como a dos evangélicos tenderão a desaparecer com o tempo. A intolerância desse movimento é notória, como no episódio do chute à santa padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, por um pastor da Igreja Universal. Na Irlanda do Norte, os católicos são perseguidos por extremistas protestantes, que atacam e apedrejam crianças católicas em sua ida à escola.O movimento evangélico prega um fatalismo e um determinismo divino que são contrários ao livre-pensar, estimulam a alienação das pessoas, impedem seu crescimento intelecto-moral, mas como qualquer religião, deve ser respeitado na medida em que não prejudique a liberdade de pensamento. A intolerância religiosa deve ser combatida impiedosamente, mas a partir do debate, do esclarecimento e da reflexão.O Espiritismo, por ser uma filosofia científica, não precisa se preocupar com o avanço do movimento evangélico, a não ser sob o ponto de vista político, pois a busca de uma hegemonia religiosa tem por princípio a intolerância, característica básica da mentalidade religiosista. O caminho espírita é bem outro. O seu apelo é pedagógico, educativo, seu comprometimento é filosófico e com a pretensão de andar lado a lado com a ciência. Quem tem que se preocupar com o avanço do movimento evangélico é o Espiritismo Cristão e Religioso, que tem perdido muitas ovelhas de seu rebanho, seduzidas pelo discurso místico da aceitação do Cristo, como panacéia dos problemas do homem contemporâneo.

Fonte:3 Almanaque Abril 2000.3 Enciclopédia Encarta.3 Revista Veja - outubro 2000.3 Site do IBGE – www.ibge.net