Artigo de Denizard de Souza - Janeiro / Fevereiro de 2002

O Espiritismo e a Cristandade

O artigo abaixo faz parte de um debate inserido na página Ipepe Jurídica, na Internet, com comentários iniciais do vice-presidente da Confederação Espírita Pan-Americana (Cepa), Ademar Arthur Chioro dos Reis.Para quem acha que o nosso movimento não tem crítica e gente de valor, ou ainda, que o pensamento evangélico-religioso e místico tomou a mente e os corações de todos, definitivamente, leiam com atenção esse texto de um jovem espírita baiano, radicado em Brasília-DF, e que milita no movimento espírita oficial (muito embora mantenha bons contatos com a Cepa). Observem, em particular, duas questões:1 Espiritismo e evangelho;2 Infância Espírita.A comunicação em rede padece do problema de estarmos em contextos completamente diferentes, plurais, a tal ponto, que uma palavra no seu momento e contexto pode significar uma coisa completamente diferente do meu.Esclareçamos então: a palavra cristandade é um conceito trabalhado pelos melhores historiadores visando dar conta daquilo que foi feito do Cristianismo na Europa Ocidental ao longo da Idade Média, ou seja, trata-se da ideologia da cristandade, dos dogmas morais da Igreja medieval, de seus ritos sociais de vida e de morte, de seus valores inquestionáveis, de sua busca pela hegemonia em matéria de moral e cultura, do uso da força para legitimar os "princípios cristãos" (vide os exemplos das Cruzadas e doTribunal do Santo ofício, tão santo tal ofício que seu objetivo era matar os dissidentes). A cristandade também é entendida historicamente como modelos de Educação e Cultura, Ideologia e Sociedade, de tal modo que não podemos e nem devemos cair na ingenuidade de não reconhecer que há sim um sincretismo cultural de natureza católico-espírita no Brasil. As razões para tal são óbvias, somos ao mesmo tempo o maior país católico do mundo e o maior país espírita do mundo: o sincretismo foi inevitável. Se você aprofundar estudos filosóficos, históricos, sociológicos e políticos, descobrirá que houve e continua existindo muitos "evangelhos", diferentes usos sociais da "doutrina cristã", aplicações da mensagem de Jesus que vai do catolicismo romano mais papal à fragmentação religiosa e de seita dos "movimentos evangélicos", do cristianismo filosófico (Tomás de Aquino, Santo Agostinho, o primeiro fazendo a fusão entre Aristóteles e Jesus, o segundo integrando Platão e Jesus), passando pela Igreja Universal do Reino de Deus, (explicitamente marketeira e mercadológica, não que as demais também não sejam), A Igreja Cristã ortodoxa, na sua versão grega e russa, a Teologia da Libertação, meio cristã-católica meio Marxista, a Igreja Católica Brasileira e mais trezentas mil versões do "evangelho" espalhadas ao redor do mundo.Aquilo que se chama de "inusitado", "fazer algo de grandioso e diferente" pode ser apenas o esforço de construirmos na PRÁTICA uma proposta de Educação que faça o Evangelho SEGUNDO o Espiritismo, e não o contrário. As limitações do estudo do Evangelho são historicamente comprovadas, Jesus nada escreveu, dos evangelhos sinópticos; somente dois dos seus escritores conviveram com Jesus, os demais foram apóstolos e não-discípulos. Jesus falou por parábolas, daí porque Kardec em sua sabedoria, as situou em sua lógica moral e não fez hermenêutica do evangelho. Segundo ele o evangelho contém cinco matérias: os atos comuns da vida do Cristo, as palavras que foram tomadas pela igreja para fundamento de seus dogmas, os milagres,as predições e finalmente o ensino moral. Kardec diz explicitamente que as quatro primeiras eram objeto de controvérsias históricas e ideológicas e que não interessava ao Espiritismo, ficando somente com a essência moral.Penso sim, que a nossa comunidade está desatenta com nossos modelos pedagógicos, se é que eles existem entre nós. O que se faz é reprodução cultural da cristandade. Tenho dois filhos em aulas de "moral cristã" que me falam das tais com as interrogações próprias da idade, um tanto desestimulados pela pobreza didática, pela subestimação da inteligência dos jovens, pelo moralismo bobo e contraproducente, pelos dogmas implacáveis que circulam em nosso meio espírita.Não me parece razoável fechar os olhos para tudo isto, em nome da "paz e do progresso geral". Ao contrário, somente tendo a humildade de reconhecer que nosso discurso está caduco e trabalha com categorias superficiais, inclusive àquela que vê obsessão por toda parte, poderemos avançar para níveis de qualidade minimamente satisfatória.Apesar de nosso ufanismo espírita, é preciso perguntar: o que estamos fazendo com nossos filhos, crianças e jovens em nossas casas espíritas?Certamente que devemos ter feito o dever de casa em nosso próprio lar. Mas, e a comunidade espírita, está sintonizada com as reais necessidades de qualquer criança e jovem do nosso mundo contemporâneo?Termino lembrando que a história em matéria de mudanças é feita também através de rupturas ou quiçá essencialmente por elas.O olhar diferente é a oportunidade de começarmos a mudança, se tivermos a coragem de reconhecer nossos limites existenciais, culturais e espirituais.A crítica recai naquilo mesmo que desestimula o jovem na visão tradicionalista da cristandade, repressiva, fiscalizadora, mais moralista que moralizante, mais dogmática que reflexiva, mais aparente que essencial em matéria de ética e relacionamento humano, mais preocupada com o formal do comportamento social, seu simulacro de moral, do que com o Cristianismo Existencial de Jesus, sua virilidade em ser enérgico com os escândalos da esfera pública e paciente, misericordioso, com aquilo que dizia respeito às limitações da subjetividade de cada um (vícios pessoais), que jamais vacilou em separar a verdade do jogo ideológico das idéias a serviço do poder e da ilusão.De minha parte, posso assegurar que não sofro de "alergia" a Jesus e ao Evangelho, sobretudo ao homem-histórico que andou descalço no meio das ruas e dialogou com naturalidade com a comunidade de seu tempo, que desafiou pacificamente os poderosos, não aceitando-lhes as propostas políticas de cooptação, a exemplo do memorável diálogo de Pilatos (governador da Judéia) e Jesus (Rei dos Judeus) quando o primeiro tentou atrair Jesus para o seu lado, literalmente numa tentativa de cooptação política.Jesus e o evangelho, como dissera Gandhi, é modelo para a humanidade ser feliz, dizendo-se aquele crístico, mas não cristão.A Teologia Cristã tem uma moral que se impõe, e não tolera nenhum desvio. Já o evangelho de Jesus é uma proposta pedagógico-espiritual inspirada numa transformação intimista, subjetiva e social, ao mesmo tempo com sentido autêntico de existencialidade, passo-a- passo, sem retóricas bombásticas nem mudanças bruscas e aparentes, sem moralismos de fachadas, mas viril com a transformação interior, constante, corajosa, rica em auto-descoberta e respeito ao ritmo subjetivo de cada um. Jesus foi o pensador-exemplo da transformação progressiva, com sacrifícios quando necessários, mas profundamente ligado à pluralidade da natureza do homem. Evangelho hoje se não tiver a base filosófica do Espiritismo, em nossa comunidade espírita, claro, e da Sabedoria Universal, eventualmente pode se transformar em mais um dos grandes simulacros típicos da sociedade de consumo, a sociedade-vitrine da imagem midiática, da marca, da simulação,da substituição da vivência pela aparência.Paz aos nossos corações, a única duradoura e profunda.