Artigo de Eugênio Lara - Novembro de 2001

A Reforma, a Transformação e a Ruptura

Desde que surgiu, o centro espírita passou por diversas fases, por várias mudanças. Em cada país assume características diferentes, conforme a cultura, o nível econômico, a maneira de pensar e sentir o Espiritismo. Um centro espírita na Índia será diferente de outro nos Estados Unidos ou no Brasil. O primeiro centro espírita, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), criada por Allan Kardec em 1858, deveria ser o modelo básico para todos os centros espíritas vindouros. O fundador do Espiritismo deixou um regulamento essencial para o seu funcionamento, definiu critérios, estabeleceu princípios fundamentais que ainda podem ser aplicados pelos espíritas.
A SPEE era uma sociedade civil, cultural, voltada para o estudo científico e filosófico do Espiritismo e de diversos ramos do conhecimento a ele correlacionados. Logo de início se vê a advertência: “São defesas nela as questões políticas, de controvérsia religiosa e de economia social”. Compreensível para o contexto da época, imerso em agitações políticas, movimentos revolucionários, conflitos religiosos. E também pelo fato de haver muitos adeptos de religiões, católicos, protestantes, budistas, muçulmanos, dentre outros, convertidos ao Espiritismo. Era uma questão não somente de respeito às religiões, mas também de prudência.
“Conquanto este regulamento seja fruto da experiência, não o apresentamos como lei absoluta, mas unicamente para facilitar a formação de Sociedades aos que as queiram fundar, os quais aí encontrarão os dispositivos que lhes pareçam convenientes e aplicáveis às circunstâncias que lhes sejam peculiares. Embora já simplificada, essa organização ainda o poderá ser muito mais, quando se trate, não de Sociedades regularmente constituídas, mas de simples reuniões íntimas, que apenas necessitam adotar medidas de ordem, de precaução e de regularidade nos trabalhos.” (O Livro dos Médiuns, cap. XXX, trad. Guillon Ribeiro – Ed. FEB)
O espírito democrático de Kardec aí se faz notar ao considerar o regulamento da SPEE como um referencial, um modelo adaptável às circunstâncias. Se o Espiritismo se organizasse como uma milícia, uma igreja ou seita, os critérios seriam outros, pois esses segmentos são centralizadores, estabelecem padrões rígidos, hierarquizados e obrigam os seus adeptos a engolirem pacotes prontos, pasteurizados, vindos de cima para baixo. Há no Brasil instituições espíritas que se organizam dessa maneira. Se não seguir a sua cartilha, a exclusão é quase certa.
Parafraseando o filósofo espírita Herculano Pires (1914-1979), se os espíritas se orientassem pelos padrões democráticos e horizontais estabelecidos por Kardec, o Espiritismo seria hoje “o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra”.(O Centro Espírita – Ed. Paidéia). 
O ufanismo de Herculano era notório em função de seu grande amor pela filosofia espírita. Hoje poderíamos afirmar que se o Espiritismo voltar a trilhar o caminho que foi traçado desde seu início, sem atalhos, sem paradas estacionárias, mas com o sentido filosófico e científico originais, adaptado às novas circunstâncias, ele pode vir a se tornar UM DOS movimentos culturais e espirituais mais importantes do planeta. Isso não significa ser manchete nos jornais, aparecer no Jô Soares, no Fantástico ou no programa do Gugu. A qualidade é o que importa, muito mais do que a quantidade. Por outro lado, não queremos dizer que devemos desprezar a mídia. Ao contrário, ela existe para ser usada em benefício da informação das pessoas, da educação, da formação de opinião. O Espiritismo também se insere nesse contexto formativo e informativo.
Abismo
Ninguém tem dúvidas de que existe um abismo entre as igrejas de hoje e as comunidades cristãs primitivas, aquelas que se reuniam nas catacumbas, antes de se tornarem uma religião do Estado. Esse mesmo distanciamento se verifica entre a SPEE e os centros atuais. Dá para contar no dedo os grupos, ao menos no Brasil, que se aproximam dos ideais dos primeiros centros espíritas surgidos no século retrasado.
Qualquer processo de transformação, de atualização ou autocrítica que se queira fazer no Espiritismo deverá passar necessariamente pelo CE, pois ele é a célula básica do movimento espírita. Não adianta querer atuar somente via cúpula, nas estruturas mais organizadas, isso pela própria característica anárquica desse movimento, cheio de caciques, cada qual com seu trabalho doutrinário. Grande parte dos CEs não dá a mínima para o que decidem os burocratas das federações estaduais, que dirá as de âmbito nacional ou internacional.
Diversos caminhos podem ser adotados para tentar aproximar o CE do Espiritismo. Elegemos três caminhos básicos que consideramos possíveis de serem implantados. O caminho reformista, o transformador e o revolucionário.
O caminho da Reforma
Na medida em que o freqüentador vai ganhando consciência, compreendendo que o centro que ele dirige ou simplesmente participa não corresponde àquilo que ele lê nas obras de Allan Kardec, de pensadores sérios e comprometidos com os ideais espíritas, a angústia e a indignação se instalam em seu coração, na sua mente.
Mudar o nome do centro, sua organização arquitetônica, os estatutos, as atividades significa mexer num ninho de vespa. Vai ter de suportar o melindre dos adeptos apegados a formas arcaicas de sentir a Doutrina. Terá de enfrentar a tradição.
Começar pelo conteúdo, em alguma atividade, aos poucos. A mudança do nome do centro e do estatuto será a última etapa do processo que pode se estender por muitos anos, décadas talvez. Haverá muito trabalho pela frente.
É necessário pessoas que se enquadrem no perfil do dirigente que consegue fazer omelete sem quebrar os ovos. A mudança se dará pelo diálogo, pela persuasão. Torna-se imprescindível cativar os mais antigos, ganhar confiança da comunidade que freqüenta a instituição.
Trata-se da política do “panos quentes”, a mudança em doses homeopáticas, aquele estilo mineiro de fazer política, nos bastidores, aos poucos, sem conflitos abertos, sem veias rompidas, sem hemorragia.
O embate político será uma questão de tempo. Nunca é demais lembrar que o estatuto tem de ser memorizado, de cor e salteado, pois se trata de uma sociedade civil, composta por pessoas que nem sempre possuem o mesmo pensamento.
O resultado inicial desse processo será a divisão, o conflito doutrinário. De um lado os conservadores e de outro, os reformistas. A convivência tenderá a se tornar insuportável até o ponto em que, possivelmente, cada um deverá seguir o seu próprio caminho.
Aquela frase evangélica de que um reino dividido não se sustenta, se autodestrói, é verdadeira. Não dá para conviver, trabalhar, realizar em uma instituição à beira de uma “guerra civil”. O diálogo, o acordo, o armistício fazem parte integrante desse processo reformista.
O CE tenderá a se aproximar timidamente daquele modelo ideal preconizado por Allan Kardec, adaptado ao contexto atual, à cultura. No entanto, em função da postura reformista, a distância entre o modelo virtual e o real sempre será enorme, inatingível. É o preço que se paga pela ação reformista, sem rupturas abertas, sem a ação direta. A frustração prossegue. Reciclar uma instituição que começou com a fundação errada, a estrutura desengonçada e sem critério é trabalho para o Super-Homem. Mas é um caminho que muitos adotam, notadamente a turma do “deixa disso”, aqueles que, possivelmente, tenham sido bombeiros em outra encarnação e, portanto, adoram apagar um incêndio.
Transformando o Centro
Esse caminho exige pulso e convicção firmes. Não tem concessão. Nada de abrir mão de determinados princípios doutrinários com receio de melindrar os menos informados ou os interessados em se manter no poder.
O Espiritismo tem que estar em primeiro lugar. Quem ama mais o evangelho do que o Espiritismo que vá buscar guarida em alguma igreja, seita ou religião. Há uma quantidade enorme de instituições religiosas prontas para receberem de braços abertos novos adeptos a fim de encorpar o seu rebanho.
Poucos são os que pensam assim. A grande maioria não gosta de conflitos, prefere deixar as coisas como estão, sem se comprometer. Portanto, se há um grupo coeso, realmente preocupado com o Espiritismo, ele tem que se manter unido, definir estratégias, táticas adequadas, agir em bloco e se mostrar como um exemplo de dedicação doutrinária.
Esse grupo, amiúde, é minoria. Portanto, mais um motivo para que não haja nenhum tipo de concessão. Toda minoria que se preze não pode transar com o poder, tem que se manter eqüidistante senão será tragada, absorvida, incorporada ao sistema dominante.
Perceber o momento de “dar o bote”, de realizar efetivamente a mudança, exige um alto grau de sensibilidade, de percepção do timing, da circunstância propícia. Tem que fazer a hora e não ficar esperando acontecer.
Todo cuidado é pouco, principalmente com os mornos, os traíras, os que preferem, no anonimato, fazer seu trabalhinho de base, de formiguinha, nem sempre conforme os objetivos do grupo. Essas pessoas dúbias, inseguras, falsas, que se integram e assumem, aparentemente, o discurso da mudança, mas que funcionam como simples mariposas ao redor da luz da transformação, são as mais perigosas de se lidar e de se identificar. É preciso cuidado com os Judas, os Silvérios dos Reis, os Roustaings.
Todas as armas para conseguir o poder de forma efetiva devem ser usadas, sem piedade, mas bem longe de algum tipo de comprometimento moral. Não vale a pena se comprometer com indivíduos que estão num nível de apego muito grande a estereótipos, mitos, superstições e interesses egoísticos. Aliás, nunca vale a pena se comprometer moralmente com alguém.
Suportar a reação não será nada fácil. Tem que ter estômago, estrutura moral e psíquica. Abandonar a trincheira, desistir no meio do caminho pode ser desastroso. A realidade muda somente com transformações efetivas, fruto da perseverança, da paciência em se esperar o momento certo de intervir. 
Trata-se de um caminho que deve ser seguido dependendo da característica do grupo que pretenda promover as mudanças necessárias e, obviamente, do perfil da instituição. Ter claro o jogo de forças políticas é fundamental.
Ruptura Radical
É muito mais fácil reformar, negociar a transformação, partir para o diálogo, tentar aparar as arestas aqui e ali do que seguir um caminho mais radical.
A propósito, a palavra radical sofreu com o tempo uma deturpação em seu significado. O pedagogo e educador Paulo Freire foi um dos que resgataram o sentido original da palavra radical: ir à raiz dos problemas, manter o sentido fundamental, essencial de uma idéia. O antônimo do radical é o sectário, o sujeito fechado, cristalizado, autoritário, intolerante e intransigente.
Seja o seu falar “sim, sim - não, não”, ensinamento deixado por Jesus de Nazaré, é uma postura radical, assim como aquela outra máxima dele: “não se pode servir a dois senhores”.
A oposição se dará quase na mesma medida de uma atuação radical, pois ela reivindica a essência das coisas, vai buscar a real causa dos problemas, toma como referencial a raiz de uma idéia.
Ser um espírita radical significa tomar o pensamento kardequiano como referencial, como baliza do pensar e do fazer, sem transigir, sem negociar com outras correntes de pensamento adjacentes como o esoterismo e o cristianismo.
Pois quando todas as tentativas de se reformar ou de se transformar determinada instituição esbarram na forte oposição, chegando a ponto de se travar o processo, aí não adianta prosseguir, pois o que ocorre é a animosidade, o conflito aberto, a guerra ideológica. Formam-se partidos, grupos se articulam, instala-se uma verdadeira guerra intestina.
Quando um edifício se encontra carcomido pelo tempo, em frangalhos, estagnado a tal ponto que a um mero sopro ele se desmorona, não dá para reformar. A saída é a demolição para que, após a limpeza do terreno, possa ser projetada e construída outra edificação, mais moderna, adequada aos novos tempos, bela e funcional.
Mas para quê demolir se há a possibilidade de construir outro edifício? Simples. Ao invés de perder tempo em querer transformar ou reformar aquilo que prefere ficar congelado no tempo basta partir para outro empreendimento.
Novo projeto, nova estrutura, sem os vícios da antiga. Aí sim dá para começar com o nome, pois há o controle total da nova edificação doutrinária. Essa é a atitude radical que está faltando em muitos grupos espíritas que preferem ficar brigando pela infra-estrutura existente.
Não há recursos para um novo espaço arquitetônico? Há dificuldades para o aluguel? Ora, enquanto isso a reunião pode ser feita na residência de um dos membros, sempre lembrando que é preferível 10 sociedades espíritas com 20 pessoas cada uma do que uma com 200. Crescimento horizontal pela multiplicação e não pela divisão.
A experiência de se criar um novo grupo é uma atitude radical, difícil de se encarar, pois o caminho que se tem pela frente não é mais aquele tradicional, religiosista, assistencialista, mais preocupado com a quantidade do que com a qualidade. Não será propriamente um centro espírita nos moldes convencionais. Daí que o nome centro espírita, se for usado, deve ser acrescido de outra caracterização: Centro de Cultura, Centro Cultural, Centro de Pesquisa, Centro Filosófico, Centro de Estudos etc.
A participação dos Espíritos se dará conforme a orientação kardequiana. Cada qual no seu lugar, um não se mete no trabalho do outro. Espírito não tem nada que influir na eleição, na estrutura regimental ou em outras decisões que são da alçada dos encarnados.
Construir uma nova estrutura doutrinária é uma aventura fascinante. De um grupo podem surgir outros, a partir de uma estratégia bem definida, conforme a necessidade, de acordo com a realidade da cidade, da região onde a instituição está sediada.
Fase Afirmativa
Além da SPEE, temos o exemplo do Instituto de Cultura Espírita do Brasil (Iceb) fundado por Deolindo Amorim (1906-1984) nos anos 40. Foi a resposta cultural de Deolindo à intolerância religiosa das instituições espíritas. Ele, ao invés de disputar o poder com as federações, preferiu seguir um outro caminho. Devemos a ele e a Herculano Pires o que hoje chamamos de cultura espírita ou pensamento espírita. O Espiritismo que até agora foi construído no Brasil não pode ser renegado. Ele é o resultado da ação histórica dos espíritas em dado momento, conforme suas características intelectuais e morais. Essa realidade que hoje vivenciamos deve ser utilizada como o húmus, como adubo para novas projeções doutrinárias.
Isso significa partir para uma fase afirmativa do Espiritismo. O tempo da negação já passou. Não adianta ficar lamentando e imaginar que a filosofia espírita deveria ter seguido um outro rumo no seu desenvolvimento. A realidade é essa que aí está, um movimento pujante, o maior do mundo, mas que se ressente da qualidade doutrinária. Um bolo impregnado de bromato, do fermento cultural místico e sincrético de nosso País. É preciso então por a mão na massa e modelar uma nova estrutura, sem voltar as costas para o que existe. Quem quiser partir para a reforma, é um caminho. A transformação se dará em um outro patamar. E a ruptura radical, revolucionária, mostra-se como o caminho mais conveniente pelo contexto de transformações emergentes que vivenciamos.