Artigo de José Rodrigues - Outubro de 2001

Um Projeto de Homem

O ambiente ficara tenso no amplo salão da antiga USE, situada na rua Leopoldo Couto de Magalhães Jr, capital paulista. Debatia-se a proposta do Departamento de Infância da ex-Ume de Santos para a adoção de um programa que contemplasse os fundamentos do espiritismo nas aulas até então denominadas de evangelização infantil. Como seria natural, por sugestão de Jaci Regis, chamar-se-ia o setor de infância espírita, algo com personalidade própria, inovador em conceitos e métodos. Pouco antes, eu estivera em um dos grupos de discussão, num esforço para expor que os princípios espíritas de moral eram universais, derivam de fatos da natureza, levando a quem os conhecesse a uma visão de mundo solidária. Assim, as divisões religiosas se reduziriam, os líderes, se os houvesse, ficariam para cada um, sem hostilizações recíprocas, nem disputas. 
Uma senhora, em plenário, sacudindo nosso programa impresso perguntava: “Precisamos saber o que está por trás disso!” No substrato dos oponentes à inovação havia a interpretação de que “querem tirar Jesus do Espiritismo”. Claro que a proposta não foi acolhida, ficando para um “depois” que não aconteceu para a grande maioria. 
Passados uns 15 anos do fato sinalizador de posições, ele voltou-me em forma de reforço à convicção do acerto da proposta, enquanto bombeiros vasculhavam os escombros das torres gêmeas de Nova Iorque e o mundo debatia os conflitos religiosos. A irracionalidade chegou a tal ponto de desconfiança que pessoas desta ou daquela cor, de roupas diferenciadas, turbantes, barbas, passaram a ser perseguidas, molestadas, obstadas no seu direito de ir e vir. Uma caça ao estrangeiro, ao não-nacional, sob o ponto-de-vista de um biótipo padrão, ainda perdura nos Estados Unidos e outros países mais alinhados. A mídia precisou ir buscar fundamentos do Alcorão para mostrar que o livro sagrado dos islamitas condena o suicídio e todo o mal, genericamente visto. 
É cedo para se prever o quanto de transformações culturais, religiosas, econômicas e sociais o tresloucado gesto de fanáticos de qualquer origem provocarão no mundo, mas é indesmentível que se está desmascarando a intolerância, a hipocrisia, a ignorância, supostamente baseadas em princípios da ética e da moral. Há, sim, a mostra das entranhas de parcela da humanidade que se baseia num convencionalismo de conveniência, cumpre rituais periódicos e ostenta bandeiras separatistas. Em tudo, um misto de crença, uma seletividade social, um conflito de raças e culturas, um apoio a modos de vida que tendem a processos hegemônicos, por si mesmos impositivos e exploradores dos mais fracos. Que moral é essa? Que Deus é esse? 
Quando ouvia o locutor repetir trecho da carta deixada na mala do terrorista suicida “Vc. está entrando no paraíso...na felicidade eterna”, pensava até que ponto o fanatismo leva pessoas a se deixarem enganar. Uma aula no princípio da infância que tratasse da continuidade da vida, da construção de uma vida que não cessa, dos mecanismos da responsabilidade, da igualdade intrínseca das raças e dos seres, acredito que levaria a outro desfecho. 
De outra parte, até que ponto uma moral, vamos dizer, concessiva, serve para sancionar o ímpeto dominador de povos e nações? Interessante é que aqueles mesmos que apoiaram invasões, bombardeios em terras alheias e distantes, financiaram grupos e países que hoje mudaram de lado, reúnem-se nas igrejas e entoam cânticos de paz. Têm todo o direito e que esses gestos abram reflexões em direção ao respeito universal, mas refletem um ato que à luz dos acontecimentos, se tornou tardio. As torres e parte do Pentágono ruiram e houve milhares de mortes. Não se trata de uma troca ou condenação, pois o terrorismo é cego e louco, mas de um arquétipo que está em jogo, o de uma avaliação histórica sobre ações e resultados. Tanto que, entre outros efeitos, só agora duas grandes potências mundiais começam a reconhecer o direito de os palestinos terem seu estado. 
Eis o contexto para que o eterno conflito do revide, progressivamente, avance do militar para o inteligente e o humano. Não valem interesses imediatos, como a preservação de países que detêm poços de petróleo ou se situem em áreas estratégicas. Um a um, esses “argumentos”, como o das hegemonias políticas e econômicas, estão caindo, porque o pessoal “do outro lado” resolveu entregar a própria vida em sacríficio pela causa. Então há que se pensar num projeto de homem, antes do de nação. De um homem integral, bio-psiquico-espiritual, para quem a ética não seja apenas um ajoelhar semanal na igreja, mesquita, sinagoga ou qualquer outro templo, mas um exercício permanente de conhecimento do próprio ser e da sociedade.

José Rodrigues é jornalista, economista e um dos coordenadores do site Pense Pensamento Social Espírita. 
www.viasantos.com/pense