Artigo de Milton Medran Moreira - Novembro de 2001

Opinião em Tópicos

O Mito

O mito do “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho” vez por outra renasce das profundezas do inconsciente coletivo espírita-cristão. Agora mesmo, com as tragédias do World Trade Center e do Pentágono não faltaram vozes ufanistas identificando o grande momento do resgate da Terra do Cruzeiro, qual nova Canaã ou Jerusalém redimida, sendo promovida a centro do mundo, em cumprimento à promessa feita por Jesus, naquele passeio a que foi levado, “no último quartel do século XIV”, quando “o Cordeiro de Deus”, procedendo “do coração luminoso das esferas superiores”, conduzido por “anjos e tronos que lhe formavam a corte maravilhosa”, surpreso e entristecido por ver na Terra somente “veredas escuras, cheias de lama da impenitência e do orgulho”, avistou aquela extensão de “matas virgens e misteriosas”, ao sul do continente ainda não descoberto, identificado pelo anjo Helil, que fazia parte de sua Corte, como o território futuro do Brasil. Fascinado pela magia daquele paraíso terrestre, Jesus ali mesmo abençoou e elegeu aquele “solo dadivoso e fertilíssimo”, como sede de uma futura pátria onde “todos os povos da Terra aprenderão a lei da fraternidade universal”.

A Terra Prometida

Para o Espiritismo cristão, cultivado no Brasil, os trechos acima colocados entre aspas, extraídos da obra mediúnica ditada pelo escritor Humberto de Campos, não são mera expressão ficcionista de um excelente literato brasileiro que, desencarnado, passou a escrever pela pena de Chico Xavier, elegendo o filão espiritualista como sua nova temática preferencial. Ao contrário, o livro é visto, literalmente, como uma profecia celeste, ambientada em clima de extremo misticismo, onde abundam querubins e serafins percorrendo o espaço em carruagens de luz, símbolos tão do gosto da tradição evangelista que também herdou do judaísmo o mito da Terra Prometida, onde correrão o leite e o mel. Para o espiritismo cristão e evangélico, essa obra é muito mais importante que O Livro dos Espíritos. Suspeito, até, que sua venda seja bem superior à da obra fundamental de Kardec. O exemplar que compulso no momento em que alinhavo este comentário, por exemplo, e que adquiri na fase eufórica de minha conversão ao Espiritismo, é da 12ª edição, em 1979. Pelos dados técnicos ali constantes, a reedição, somada às anteriores, atingiu 92 mil exemplares. Decorridos mais de 20 anos, quantos milhares mais já terão sido comercializados?

O Governador

Decididamente, o Jesus apresentado nesta obra nada tem a ver com o Jesus de Kardec, de inteira dimensão humana, “guia e modelo da humanidade”. O ali retratado é um Jesus mítico, nem homem, nem Deus, que mora no céu e que, no século XIV, resolveu visitar as regiões próximas da Terra, da qual, a se julgar por sua surpresa ao ver o que aqui acontecia, dela se mantivera por 1.300 anos sem qualquer notícia. Logo ele, apontado pelos mesmos cultivadores dessa doutrina, como o “Governador do Planeta”! Na pressa de reassumir a Governadoria de que se havia descuidado por tanto tempo, o “Cordeiro de Deus”, elegeu a futura Terra do Cruzeiro para ser o coração do mundo e a pátria do evangelho, ali mesmo designando o anjo que lhe dava as informações que ele não possuía, para encarnar em Portugal, preparando com o futuro concurso de Jean Baptiste Roustaing, Bezerra de Menezes e outros, o ambiente que faria do Brasil a Terra por ele abençoada e predestinada.

Civilização e Trabalho

Então, para quem cultiva esse mito, cada guerra que estoura na Europa ou é provocada pelos Estados Unidos, cada atentado ocorrido nos países do 1º mundo, são vistos como indícios da proximidade da remissão do Brasil como terra da promissão. Daqui a pouco, aqui se instala definitivamente o Reinado do Evangelho, do Bem, da Paz, da Fraternidade Mundial. 
Que bom se os problemas de uma pessoa ou de uma nação se resolvessem por mera predestinação espiritual! Mas, enquanto isso, seguimos como campeões de violência urbana e rural, como símbolos mundiais de desigualdade social e de má distribuição de renda, com estratosféricos índices de fome, miséria, doença, mortalidade infantil e como o país dos mais incríveis recordes de corrupção política e escândalos econômicos. 
É claro que esses problemas podem ser equacionados a partir de uma visão espiritualista adotada por seu povo. Isso o capacitará à tomada de uma consciência que valoriza o trabalho, a ética, a honestidade e a fraternidade e que poderá transformar esta nação numa das mais importantes no concerto mundial. Mas, essa construção só pode partir de valores concretos, frutos que só a civilização amadurece e só a experiência fornece. Não cai do céu e nem ocorre por predestinação dos anjos.