Artigo de Eugênio Lara - Outubro de 2001

Sobre a Mulher no Islã

O conflito entre os Estados Unidos e os terroristas fundamentalistas leva inevitavelmente a comparações entre a cultura ocidental e a muçulmana. O convívio entre essas duas culturas, desde a Idade Média, nunca foi muito amistoso. Isso desde as Cruzadas, que criou um fosso quase instransponível entre esses dois mundos. Os conflitos no Oriente Médio, em especial, a Guerra no Golfo Pérsico e o recente ataque ao World Trade Center e ao Pentágono, reavivam a discussão dos valores ocidentais x valores muçulmanos.
A estética, a música, a culinária, enfim, a cultura do Oriente Médio, são muito mais do que exóticas. Devemos a eles a definição do que poderíamos chamar de Cultura do Ocidente, que na verdade surgiu com o triunfo da escritura sobre a oralidade, da hegemonia cristã contra o paganismo e do estabelecimento de uma forma de cultura que pouco tem de analógica. Geograficamente, a fonte desse pensamento que determinou as características da nossa cultura, se encontra na Europa Ocidental. Naquele miolo que abrange a França, Alemanha, a Áustria e, por extensão, os anglo-saxões e demais países latinos, como Portugal, Espanha e Itália.
Por termos sido colonizados por um país de formação celtibérica e moura, trazemos no bojo de nossa forma de pensar, valores oriundos do Islã. Basta lembrar que o candomblé, no Brasil, é fruto de um sincretismo que inclui, de forma determinante, a estética islamita.
Essa influência, obviamente, não é tão grande e intensa quanto a influência indígena e negra, mas ela existe.
A Exclusão Feminina
Isto posto, um dos fatos que mais salta aos olhos de qualquer ocidental é a exclusão feminina em países como o Afeganistão, o Irã, a Arábia Saudita, entre outros, onde o fundamentalismo islamita faz parte do dia-a-dia, a ponto de, no caso do Irã e do Afeganistão, interpretações do Alcorão serem parte integrante da constituição do país. São estados teocráticos, “governados” por Alá, através de seus representantes, os líderes religiosos, como os aiatolás iranianos, que governam o Irã desde a tomada de poder pelo aiatolá Khomeini, em 1979.
Lá, a mulher é tratada como bicho. Para um razoável segmento de árabes, um camelo tem mais valor do que a mulher. O regime dos haréns, costume adotado pelos muçulmanos no início do Islamismo (século 7), permite e incentiva a poligamia, fato esse que deixa corado qualquer adepto do cristianismo.
A mulher não deve se expor. Muitas afegãs têm os dedos cortados pela audácia de usarem esmalte nas unhas. A adúltera é apedrejada. Se não houver a permissão do pai ou de algum homem responsável, não podem casar. Cobrem todo o corpo com as burqas, inclusive o rosto com véu, aparecendo apenas o nariz e os lábios. Não podem estudar, muitas delas são mantidas no analfabetismo e pouco participam do sistema litúrgico do islamismo.
Por outro lado, a sensualidade da mulher muçulmana é notória. Vide a dança do ventre e as histórias das mil e uma noites, contadas pela sensual Sherazade, que impregnaram o imaginário erótico de tantos ocidentais, entre eles, Jorge Luís Borges, o grande escritor argentino, profundo conhecedor da cultura erudita islâmica e que muito escreveu sobre o tema. 
Uma contradição, que não fica muito atrás do cristianismo ou mesmo do judaísmo, sistemas religiosos moralistas, patriarcais e portanto machistas mas que, apesar disso, não praticam a exclusão radical da mulher como no Islã.
Países mais liberais como o Egito demonstram que é possível a convivência dos valores muçulmanos com os ocidentais. Lá, as mulheres, notadamente as de classe média, assimilam os valores ocidentais sem contudo desprezarem as raízes da religião islamita. 
A interação cultural é sempre positiva, quando se assimila o que é conveniente, sem perder as raízes do modus vivendi tradicional.
Em um mundo agora globalizado, formas arcaicas de comportamento tendem a desaparecer, a ponto de, com o tempo, parecerem ridículas. Possivelmente o extremismo fundamentalista seja um sintoma dos novos tempos. Mudanças intensas, retaliações intensas. Ação e reação.
Pedra de Toque
A condição feminina é a pedra de toque para se mensurar o nível evolutivo de toda e qualquer cultura. Não basta se considerar fiel e temente a Deus, Buda ou Alá. Não basta se considerar um “mundo livre”. Como a mulher é tratada? Existe discriminação, violência? Como é a sua inserção no mercado de trabalho? As oportunidades são semelhantes às do homem? Não nos esqueçamos que a não equiparação salarial também é uma forma de violência. 
As tarefas domésticas são divididas? O ônus da educação da prole é restrita à mulher? Então, não dá para afirmar que uma cultura que contenha esses ingredientes seja considerada civilizada. Da civilização tem-se apenas o verniz.
Há quase 150 anos o Espiritismo, em plena sociedade patriarcal como a européia, já defendia a equiparação entre os direitos e deveres entre os sexos. O próprio fundador do Espiritismo, junto com sua esposa, antes de tomarem contato com os fenômenos medianímicos, fundaram um pensionato de moças no subúrbio de Paris e eram partidários da educação para ambos os sexos. Algumas posições hoje retrógradas de Kardec em relação ao comportamento da mulher, são compreensíveis em função do contexto em que viveu. No entanto, em que pesem pormenores aparentemente reacionários, o Espiritismo nasceu com uma posição progressista em relação à questão da mulher, como se vê nessa pergunta em O Livros dos Espíritos (As Leis Morais):
818. Donde provém a inferioridade moral da mulher em certos países?
“Do predomínio injusto e cruel que sobre ela assumiu o homem. É resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco adiantados, a força faz o direito.”
E mais, há, segundo o Espiritismo, uma correlação entre a emancipação da mulher e o progresso da civilização. Ambos estão indexados evolutivamente, como se vê nessa outra questão:
A lei humana, para ser eqüitativa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e da mulher. Todo privilégio a um ou a outro concedido é contrário à justiça. A emancipação da mulher acompanha o progresso da civilização. Sua escravização marcha de par com a barbária. Os sexos, além disso, só existem na organização física. Visto que os Espíritos podem encarnar num e noutro, sob esse aspecto nenhuma diferença há entre eles. Devem, por conseguinte, gozar dos mesmos direitos.” (questão 822-a, grifo nosso).
Contraponto 
Em comparação com outras correntes filosóficas de caráter humanista, o Espiritismo fundamenta sua posição em relação a igualdade entre os sexos, não a partir de uma teoria de valores fundada nos direitos inatos da pessoa humana, mas sim, a partir de sua visão do homem como um Espírito. Por princípio, de forma independente da organização física, sexual, todos são iguais. Estando encarnados como homem ou mulher, existe uma igualdade intrínseca pelo simples fato de serem os seres inteligentes da criação.
Civilizações como a muçulmana, apesar de se fundamentarem no Alcorão, um verdadeiro tratado ético e moral, aplicam suas leis religiosas de modo pernicioso quanto aos direitos e deveres da mulher. 
O fundamentalismo islâmico, uma distorção dos princípios do Islão, relega a mulher a uma posição incompatível com todas as conquistas humanas no campo dos direitos humanos e do direito internacional. Em um mundo globalizado como é o nosso, não dá para construir uma convivência sem conflitos abertos com uma civilização que humilha e degrada a mulher. Isso não deve justificar, obviamente, atitudes de retaliação aos países islâmicos. 
Existem outras formas de pressão que o direito internacional vem consagrando, que passam pelo caminho da diplomacia, da persuasão, acompanhada de atitudes mais radicais não necessariamente violentas, mas viris e contundentes, inclusive sob o ponto de vista econômico e cultural.
O mundo progride, apesar do terrorismo, do fundamentalismo, seja ele cristão, muçulmano, judeu, neoliberal ou esquerdista. Temos de ser otimistas e procurar manter as conquistas históricas que, no caso, fazem da mulher um ser em igualdade de condições éticas, econômicas, culturais para com o homem. A exclusão feminina no Islã deve ser vista como um contraponto que ressalta a necessidade de permanecermos na luta por um mundo onde a liberdade e a igualdade entre os sexos não seja mero discurso, mas esteja presente não-somente nas leis, mas fundamentalmente no nosso dia-a-dia.