Artigo de Eugênio Lara - Maio de 2001
Amélie Gabrielle Boudet (1795-1883) foi muito mais do que a esposa do Sr. Allan Kardec. Não fosse ela o Espiritismo morreria no nascedouro. Após a desencarnação de Kardec, Gaby, como ele a chamava na intimidade, assumiu as rédeas do movimento espírita francês com firmeza e determinação. Durante o processo de elaboração da Doutrina, sua influência foi estimulante e decisiva. O mestre de Lyon sempre a consultava. Seu reto pensar foi imprescindível nas grandes decisões que o marido teve de tomar durante a estruturação do Espiritismo.
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade.
(Ai que Saudades da Amélia, Ataulfo Alves e Mário Lago)
Na história do Espiritismo poucas foram as mulheres que se
destacaram, seja como intelectuais ou como ativistas. Quase
sempre seu papel situa-se num plano bem subalterno. Não é o
caso daquela que se tornou conhecida como a Sra. Allan Kardec.
Trata-se de Amélie Gabrielle Boudet. Poucas são as informações
que temos sobre essa formidável mulher. Todavia, as existentes são
suficientes para obtermos um razoável perfil, somente comparável
a outra grande mulher espírita, de origem espanhola, Amália
Domingos y Soler.
Mesmo com todos os condicionantes de sua época, Gaby demonstrou
que não era uma pequeno-burguesa totalmente passiva. Com os
atributos e conhecimentos que possuía, fica difícil imaginá-la
apenas fazendo brioches ou preparando um chazinho para o incansável
marido. Sua presença, ainda que discreta, foi decisiva na
estruturação do Espiritismo.
Recém-saída da Revolução Francesa, a terra natal de Gaby
passava por intensas transformações no campo político, econômico,
científico e cultural. A definição das esferas pública e
privada no campo familiar estava em processo de consolidação,
criando assim um novo formato para a família, de características
burguesas, com padrões e valores mais adequados ao novo contexto
político e econômico que surgia, deflagrado pela Revolução
Industrial. Novas relações de produção se cristalizam,
causando profunda repercussão em todos os campos da cultura.
Tentarei situar a trajetória de Amélie nesse contexto, cuja
vida será dividida, apenas para efeito didático, em quatro
fases: A primeira como a senhorita Amélie Gabrielle Boudet
(1795-1832); a segunda fase como a Sra. Rivail (1832-1857); a
terceira (1857-1869) como a Sra. Allan Kardec e a última fase
como a viúva Mme. Allan Kardec (1869-1883).
O Público e o Privado
Seguindo uma tendência que já se observava no século 18, no
chamado Século das Luzes as mulheres se tornaram parte
integrante e indissolúvel da esfera íntima, privada. Foram
relegadas a esse espaço, confinadas a ele. O espaço
familiar passou a ser associado à mulher, submissa ao marido,
protetora e educadora da prole, administradora das relações
familiares. Cristalizou-se a idéia de que a fragilidade biológica
e intelecto-moral era parte integrante do universo feminino.
Se de um lado, com as revoluções burguesas, aboliu-se quase que
definitivamente a deferência para com reis e rainhas, de outro,
essa mesma deferência ganhou outra conotação, outro
significado. Ela agora passa a existir para com o esposo, o pai,
o chefe da família e os filhos. E também dos filhos com relação
aos pais. O pai-rei, todo poderoso, substitui o adorável rei. Até
os 25 anos era necessária a aprovação formal do pai para que o
filho contraísse núpcias, tradição que sobreviveu até o fim
deste século.
Acentuou-se a distinção entre a esfera pública e a privada, ao
longo de todo o século 19. Havia papéis bem definidos para
ambos os sexos. Essa delimitação entre o dentro e o fora, entre
o interior e o exterior, análoga à oposição entre ativo e
passivo, exercerá um domínio ideológico em todo esse século.
Tal idéia era tão forte que influenciou decisivamente
determinadas conceituações kardequianas acerca dos direitos e
funções entre o homem e a mulher: É necessário que cada
um tenha um lugar determinado; que o homem se ocupe de fora e a
mulher do lar, cada um segundo a sua aptidão.1
No século 19 a política é um atributo exclusivo dos homens.
Esse poder também se estende à esfera familiar. O homem era
tratado pela esposa e filhos com deferência extremada. Ele tem o
poder econômico e portanto, político.
A sexualidade estava diretamente vinculada à família. Fora dela
o sexo era considerado pecaminoso, indecente, perigoso para as
relações interpessoais e até econômicas, de modo que o
homossexualismo e o comportamento celibatário estavam
descartados. O celibato fora da esfera religiosa se constituía
numa vergonha, num comportamento que deveria ser evitado. Relações
homossexuais eram objeto de escárnio e repressão. A família
teria de ser heterossexual, do contrário não seria família.
Os casamentos eram de preferência endogâmicos, entre donzelas e
homens maduros, com uma diferença de idade razoavelmente grande.
A união matrimonial de um casal, onde o homem fosse bem mais
novo que a mulher era execrável, não era de bom-tom, um fato
repreensível e evitado pela maioria.
A correlação entre o plano econômico, produtivo (público) e o
familiar (privado) também se dá mediante o casamento. O matrimônio
pode ser um bom negócio, um empreendimento capaz de conciliar
interesses econômicos e privados. Prática essa promovida pelos
agenciadores familiares, um corpo casamenteiro composto pelas
titias alcoviteiras, parentes próximos, o padre, que articulavam
de modo silencioso e sorrateiro, a união arranjada entre casais
estranhos entre si, portanto nem sempre desejosos de uma vida a
dois.
Na elite eram comuns dois tipos de casamento. Negociantes e
empresários que possuíam posses bem acima de suas futuras
esposas e altos funcionários e profissionais liberais,
intelectuais que desposavam mulheres com uma condição econômica
bem superior.
A chamada família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, alcança
a sua hegemonia. Formas outras de relações familiais são
consideradas marginais, exóticas e estranhas ao bom
funcionamento da família burguesa e cristã. Quase todos os
valores que hoje vivenciamos no campo familiar tiveram sua origem
no século 19. Ainda nos identificamos com os padrões
vivenciados nessa época, mais de um século depois.
Senhorita Amélie (1795-1832)
Amélie Gabrielle Boudet nasceu em Thiais, zona suburbana ao sul
de Paris, em 22 de novembro de 1795, num domingo, no período da
Revolução Francesa (1789-1799). Era filha de Julien Louis
Boudet, 27 anos, proprietário e antigo tabelião2,
um homem bem colocado na vida3. Sua mãe, Julie
Louise Saigne de La Combe pertencia a um ramo familiar de pessoas
gradas4.
Filha única, foi educada como todas as mulheres de sua condição
econômica, provavelmente em colégio interno. Segundo Henri
Sausse, era professora com diploma de primeira classe5
e se formou na primeira Escola Normal Leiga, de orientação
pestalozziana. Exerceu a atividade de poetisa e artista plástica.
Foi professora de Letras e Belas Artes.
Nos saraus artísticos e literários, muito comuns na época,
tornou-se conhecida como Amélie Boudet. Escreveu três livros:
Contos Primaveris (1825), Noções de Desenho (1826) e O
Essencial em Belas Artes (1828).
Não há, por enquanto, fotos ou imagens que possam nos dar um
visão precisa de sua aparência física nessa fase de solteira.
Henri Sausse afirma que Amélie era de baixa estatura, porém
de harmoniosas proporções, gentil e graciosa (...) inteligente
e vivaz6. Harmoniosas proporções significava,
para um francês dessa época, que Amélie seria hoje o tipo de
mulher mignon (pequena e delicada), mas conforme os cânones estéticos
franceses de então: cintura fina e quadris largos, realçados
amiúde por espartilhos, usados de forma exagerada em todo o século
19.
Era, como se vê, uma mulher da elite, rica e solteirona,
integrada na cultura literária dos salões parisienses.
Lecionava por prazer já que não precisava trabalhar para
sobreviver. Foi, desde cedo, preparada para as chamadas prendas
domésticas.
Mas Amélie fugiu a essa regra. Mesmo tendo sido educada para ser
uma matrona, daquelas grã-finas fúteis e vazias que recheavam
os salões de festa de Paris, preferiu seguir outro caminho. Sua
cultura ia além do verniz próprio das mulheres de seu nível
social.
Sua riqueza, muito provavelmente, deve ter ofuscado o enorme
preconceito que havia em relação a mulheres solteironas,
balzaquianas, que não conseguiam arranjar um marido. Quando
conheceu Denizard Rivail tinha por volta de 35 anos. Sua aparência
jovial disfarçava a idade.
Amélie e Rivail eram vizinhos, de condição social semelhante e
com ideais semelhantes. Namoraram, casaram e se tornaram
companheiros por toda a vida.
Sra. Rivail (1832-1857)
Muito provavelmente, Rivail e Amélie se conheceram mais ou menos
dois anos antes de se casarem, em algum sarau literário ou reunião
social que congregava literatos, artistas e intelectuais. Aos 25
anos, o futuro fundador do Espiritismo gozava de grande prestígio
entre a elite intelectual parisiense, como educador e pedagogo.
Kardec fundou em 1826, em Paris, o Instituto Educacional Técnico,
mais conhecido como Instituto Rivail, que funcionou
até 1834. É aí que entra em cena a doce figura da senhorita
Boudet.
Também engajada na área educacional, a senhorita Boudet passa a
auxiliar Rivail na orientação e administração do Instituto,
inclusive financeiramente.
Rivail e Amélie casaram-se em 9 de fevereiro de 1832, numa
quinta-feira.7 Na certidão de casamento consta que o noivo era
diretor de instituição de ensino.8 Rivail tinha 27 anos e Amélie,
37. A diferença de idade entre ambos era de quase 10 anos. Todos
os biógrafos são unânimes em afirmar que essa diferença etária
passava desapercebida. Parecia até que ela era mais nova do que
ele. A descrição mais detalhada de Gaby, em conformidade com o
primeiro relato de Sausse, é de Canuto Abreu:
Miudinha, graciosa, muito vivaz, aparentava a mesma idade
do marido, apesar de nove anos mais velha. Os cabelos crespos e
bastos, outrora castanhos, repartidos ao meio e descidos até os
ombros, onde as pontas dobradas se prendiam por sobre a nuca num
elo de tartaruga, começavam apenas a grisalhar, dando-lhe ao
semblante um ar de amável austeridade. As faces cheias, coradas
ao natural, quase sem rugas, denotavam trato e boa saúde. A
testa larga e alta, encimando sobrancelhas circunflexas, acusava
capacidade intelectual. Os olhos pardos e rasgados, indicavam
sagacidade e doçura. O nariz fino e reto, impunha confiança em
seu caráter. Os lábios delicados, prontos a sorrir, amparavam
seu olhar perscrutador, desarmando prevenções mas exigindo
constante respeito.9
Mesmo com toda a condição financeira de Gaby e os recursos de
Rivail, o casal vivia de forma simples em um modesto apartamento
na Rue des Martyres, nº 8, nos fundos do segundo andar de um prédio
de quatro pavimentos, contendo quarto, sala, cozinha, escritório
e sala de jantar.
Os dois formaram uma excelente dupla. Partidários da educação
não diferenciada para ambos os sexos, fundaram um pensionato de
moças no subúrbio de Paris10, atuaram juntos no Instituto
Rivail. Seu trabalho como contador servia para garantir as
despesas do dia-a-dia. Em função da fortuna de Amélie e aos
recursos que suas obras pedagógicas lhe rendiam, Rivail e sua
esposa conseguiram manter um padrão de vida bem estável.
Não tiveram filhos. A diferença de idade nunca foi obstáculo
para o entendimento cotidiano, que pouco conhecemos. Ambos
estavam engajados num projeto educacional, se entendiam bem,
dialogavam constantemente, coisa rara entre os casais de seu nível
social, mais preocupados com as futilidades próprias da vida
burguesa, do que com algum tipo de ideal.
Interessante notar que data dessa época o tratamento de meu
bem, minha querida, meu amor, em
oposição à relação autoritária que sempre marcou o
procedimento entre os casais de antanho. Rivail chamava Amélie
de Gaby, diminutivo de Gabrielle. Ao completarem bodas de prata,
surge o Espiritismo, em 18 de abril de 1857. Uma feliz coincidência.
Sra. Allan Kardec (1857-1869)
Um novo horizonte surge diante do casal Rivail. O projeto de uma
educação voltada para o pleno desenvolvimento intelecto-moral
das massas ganha nova amplitude com a fundação do Espiritismo.
Gaby permanece firme ao lado do marido e se torna a grande
incentivadora do trabalho do agora Allan Kardec. É ele mesmo
quem revela a importância que teve sua amável esposa no árduo
trabalho de estruturação da filosofia espírita: (...)
minha mulher, que nem é mais ambiciosa nem mais interesseira do
que eu, concordou plenamente com meus pontos de vista e me
secundou na tarefa laboriosa, como o faz ainda, por um trabalho
por vezes acima de suas forças, sacrificando sem pesar os
prazeres e distrações do mundo, aos quais sua posição de família
a tinham habituado.11
Que trabalho acima de suas forças teria tido Gaby? Com certeza,
enquanto Kardec trabalhava até altas horas para depois acordar
bem cedo, redigindo a obra de sua vida, sem luz elétrica, sem
laptop ou máquina de escrever, sempre de punho, com a pena
molhada constantemente em um tubo de tinta, ela não teria ficado
indiferente, prestando somente serviços equivalentes a de uma
camareira ou comissária de bordo.
Os seus conhecimentos de letras, do idioma francês, nos levam a
pensar que, no mínimo, a revisão dos originais era também
feita por ela. Compilação de material, transcrições, trabalho
não somente de secretaria, mas relacionado a decisões
administrativas, econômicas, conceituais e filosóficas,
deveriam fazer parte de suas atividades ao lado do marido.
Não ficou à sombra do esposo, ainda que tivesse tido uma atuação
discreta. Para onde quer que fosse ela o acompanhava, conforme
relato do fiel amigo Alexandre Delanne12. Segundo seu filho,
Gabriel Delanne, o lançamento de O Livro dos Espíritos e demais
obras se deram, em boa parte, devido ao grande entusiasmo e
incentivo de Gaby. Assim como nas viagens que Kardec fez a partir
de 1860. Gaby sempre o acompanhava.
No intervalo de uma dessas viagens, o escritor espírita Léon
Denis nos descreve uma cena extremamente singela e romântica, em
texto publicado na Revue Spirite (janeiro de 1923): No dia
seguinte, retornei a Spirito-Villa para fazer uma visita ao
Mestre; encontrei-o sobre um pequeno banco, junto a uma grande
cerejeira, colhendo frutos que jogava para a Sra. Allan Kardec,
cena bucólica que contrastava alegremente com esses graves
acontecimentos.13
Mais tarde, Leymarie irá revelar explicitamente, por ocasião do
desencarne de Gaby, a importante atuação que ela teve no
trabalho de estruturação do Espiritismo, ao afirmar que a
publicação tanto de O Livro dos Espíritos, quanto
da Revue Spirite, se deveu em grande parte à firmeza
de ânimo, à insistência, à perseverança de Madame Allan
Kardec.14 Nos últimos dias de sua vida, conta Leymarie,
Kardec costumava convidar os companheiros e amigos de ideal espírita
em sua casa, para jantar. Não é tão difícil imaginar como
seriam esses momentos de descontração, de intimidade,
promovidos pelo idoso casal, com todos reunidos pelos laços do
ideal espírita.
O súbito desencarne do fundador do Espiritismo abalou o
movimento espírita francês. Mas ele tinha ao seu lado a fiel
companheira, que ao invés de adotar uma postura passiva, assumiu
efetivamente todos os encargos necessários ao gerenciamento do
Espiritismo, na França e no mundo.
Mme. Allan Kardec (1869-1883)
A viúva Mme. Allan Kardec assumiu inteiramente as rédeas do
movimento espírita francês, tendo ao seu lado o fiel amigo e
companheiro do casal, Pierre Gäetan Leymarie. Logo após o
falecimento do fundador do Espiritismo, ela envia à Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) um relatório onde
descreve as novas condições de funcionamento da obra de seu
marido. Pela extensão do relatório, expomos dois itens que
consideramos fundamentais para o entendimento de sua postura
diante da enorme responsabilidade que as circunstâncias lhe
reservaram:
1. Todo o excedente dos lucros da venda dos livros e das
assinaturas da Revista Espírita, inclusive das operações da
Livraria Espírita, seriam doados integralmente à Caixa Geral do
Espiritismo.15 Amélie coloca uma condição para que isso se
efetuasse: que ninguém, a título de membro da Comissão
Central ou outro, tenha o direito de imiscuir-se neste negócio
industrial, e que os recebimentos, sejam quais forem, sejam
recolhidos sem observação, desde que ela (Mme. Allan Kardec)
pretende tudo gerir pessoalmente, determinar a reimpressão das
obras, as publicações novas, regular a seu critério os
emolumentos de seus empregados, o aluguel, as despesas futuras,
numa palavra, todos os gastos gerais.16
2. A Revista está aberta à publicação dos artigos que a
Comissão Central julgar úteis à causa do Espiritismo, mas com
a condição expressa de serem previamente sancionados pela
proprietária e a Comissão de Redação17, o mesmo se dando com
todas as publicações, sejam quais forem. (grifo meu).
Mme. Allan Kardec assume totalmente o gerenciamento do patrimônio
doutrinário deixado por seu marido. Nada era publicado, nem um
artigo, uma brochura ou livro sequer que não passasse pelo seu
crivo. Segundo amigos e companheiros que conviveram com ela até
o fim de sua vida, lia sem óculos e escrevia, sem tremer as mãos,
de modo firme e claro. A Kardequiana continuava sendo publicada,
inclusive em diversos idiomas, sempre segundo a sua supervisão.
Em uma reunião da SPEE, realizada em 3 de julho de 1869, foi
fundada a Sociedade Anônima do Espiritismo, que concentraria
todas as atividades doutrinárias, segundo o projeto de Allan
Kardec. Era uma firma, uma associação comercial com o objetivo
de dar continuidade à obra do Mestre. Essa instituição acabou
substituindo a SPEE, já carcomida por conflitos de caráter
moral e ideológico.
Segundo Zeus Wantuil, a partir de 1871 Pierre-Gäetan Leymarie
assume a Sociedade Anônima, bem como a Revista Espírita e a
Livraria Espírita. Sob a orientação lúcida e serena de Mme.
Allan Kardec, Leymarie se empenha na gestão de todo esse
empreendimento. Em 1873, a instituição muda para um nome mais
adequado: Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de
Allan Kardec, conforme o desejo de Mme. Kardec. Ela freqüentava
as reuniões da sociedade todas as sextas-feiras e nunca deixou
de participar da solenidade de comemoração da morte de Kardec,
em 31 de março, bem como da única data magna que congregava os
espíritas franceses, a comemoração do Dia dos Mortos. Todos os
anos ela presidia essa solenidade, onde discursavam diversos
oradores e eram recebidas mensagens mediúnicas.
Mas o pior estava por vir. Em 1874 a Revista Espírita, dirigida
por Leymarie, publicou diversos artigos sobre a chamada
fotografia de Espíritos. Por conta dessas fotos instaurou-se, em
16 de julho de 1875, em Paris, um processo judicial que se tornou
conhecido como Processo dos Espíritas, movido pelo Ministério Público.
Leymarie foi interrogado no tribunal e acabou sendo condenado à
prisão, junto com os dois médiuns que obtinham as fotos. Mme.
Allan Kardec não escapou ilesa desse julgamento que, com o apoio
da imprensa e da Igreja, extrapolou os limites do tribunal. Era
como se o Espiritismo estivesse no banco dos réus.
Nem mesmo a idade avançada e o respeito que Mme. Allan Kardec
desfrutava foram suficientes para evitar a violência e o escárnio
do Juiz Millet, durante o interrogatório.
Onde foi que ele arranjou esse nome (Allan Kardec)? Num
grand grimoire (grimório, manual de magia negra).
Conhecemos as origens dos livros do seu marido. Ele os
retirou principalmente de um grand grimoire de 1852,
de um livro intitulado: Alberti ... etc.
Todos os livros de meu marido afirma a senhora
Kardec foram criados por ele, com a ajuda dos médiuns e
das evocações. Nada sei desses livros que o senhor acaba de
citar.
Em seguida o Juiz se mostra como um profundo conhecedor
da Doutrina Espírita e procura ridicularizar o pseudônimo de
Rivail e o túmulo em forma de dólmen, erigido em sua homenagem.
Acho que não se deveria brincar com essas coisas. Não é
próprio rir-se de coisas semelhantes.
Não gostamos de pessoas que tomam nomes que não lhes
pertencem, de escritores que pilham obras antigas, que enganam o
público.
Todos os literatos responde Mme Kardec
adotam pseudônimos. Meu marido jamais pilhou coisa alguma.
Ele é um compilador, não é um literato. É um homem que
praticava a magia negra ou branca. Vá sentar-se. 18
Mme. Allan Kardec estava com 80 anos. Como se vê em seu
depoimento, a idade avançada não foi obstáculo para que
permanecesse firme diante das acusações feitas ao fundador do
Espiritismo. Insatisfeita com o tratamento que recebeu, ela
redige um protesto que foi incluído nos autos do processo:
Declaro que o Senhor Presidente da Sétima Câmara
Correcional não me deixou livre para bem desenvolver o meu
pensamento, pois, em meu interrogatório, introduziu reflexões
estranhas ao debate e desejou ridicularizar o Senhor Rivail,
conhecido como Allan Kardec, fazendo dele um simples compilador e
negando seu título de escritor. Protesto energicamente contra
essa maneira de interrogar e solicito ser ouvida novamente,
porque é costume na França respeitar as senhoras, sobretudo
quando têm cabelos brancos. Não se deveria interromper-me e
mandar-me sentar, após se terem divertido com o que considero
inatacável, ou seja, o direito de ter feito construir um túmulo
para o meu companheiro de provações, para o esposo estimado e
honrado por homens do mais alto valor. 19 (grifo meu)
Amélie Gabrielle Boudet faleceu em 21 de janeiro de 1883, aos 87
anos, num domingo. O sepultamento foi simples, segundo seu
desejo, em 23 de janeiro junto ao dólmen do fundador do
Espiritismo, no Pére-Lachaise. Em seu funeral, diversos oradores
discursaram rendendo-lhe homenagens e exaltando o seu trabalho
incansável e ininterrupto pelo estudo e a divulgação do
Espiritismo. O mais preciso e comovente foi o de Gabriel Delanne,
que reproduzimos a seguir:
A Sra. Allan Kardec foi, verdadeiramente, a mulher forte,
segundo o Evangelho. Tornando-se a esposa do grande vulgarizador
do Espiritismo, adotou suas idéias. Empregou todas as suas
energias no estudo dos novos princípios; venceu os preconceitos
de seu século e de sua educação e se elevou, por sua vontade,
até à altura do espírito de nosso Mestre.
Ela provou, pela continuidade, pelo profundo apego que
manteve por nossa maneira de ver, que o Espiritismo havia
penetrado vivamente em seu coração.
Sim, essas grandes e sublimes verdades que nossa filosofia
professa lhe deram a coragem de ajudar ardentemente o propagador
da nova fé e sustentá-lo nas lutas muitas vezes penosas de
apostolado.
A companheira de um homem superior sente quantos deveres
particulares lhe cabem; não somente ela tem, como toda esposa
devotada, a tarefa de o cercar de amor e de atenções, porém,
tem, além disso, a santa missão de fortalecer sua alma nas
horas dolorosas das provas. Deve acalmar os cruéis ferimentos
que fazem ao coração dos campeões do progresso o ódio e o
sarcasmo. Ela deve encontrar essas boas palavras que são para a
alma bálsamos soberanos. Deve, enfim, por sua energia, dar forças
ao atleta fatigado.
Pois bem, a Sra. Allan Kardec foi essa mulher; não faliu
na alta missão que lhe foi confiada.
Durante as viagens de seu marido, pela França, ela o
cercou com sua solicitude e sua perspicácia, confundindo, muitas
vezes, pela segurança de seu julgamento, os que desejavam
explorar a bondade tão conhecida do Mestre.
Allan Kardec se inspirou em sua inteligência tão justa
para a elaboração de suas obras; não as publicou nenhuma, sem
a ter consultado e, muitas vezes, aproveitou suas sugestões que
a retidão de julgamento de sua companheira fornecia.
É pois, uma dupla perda que temos neste momento: a de uma
mulher de coração, devota às nossas idéias e a de uma
colaboradora do homem de gênio que nós recordamos.20
Notas
(1) KARDEC, Allan - O Livro dos Espíritos, p. 822-a.
(2) SAUSSE, Henri, Biografia de Allan Kardec, pág.10.
(3) WANTUIL, Zeus, Allan Kardec vol. I, pág. 114.
(4) Ibidem, pág. 126.
(5) SAUSSE, Henri, Op.cit. pág. 10.
(6) Ibidem.
(7) Já conhecido e possuindo recursos próprios, casou-se,
em 1832, com a professora diplomada Dona Amélie Boudet, preciosa
auxiliar que passou a ser, em toda a sua existência, quer no colégio,
quer na luta pela vida, quer na sua gloriosa missão social
(ABREU, Canuto, Allan Kardec in revista Metapsíquica, nº 3,
agosto/setembro de 1936, pág. 3.
(8) MARTINS, Jorge Damas e BARROS, Stenio Monteiro, Allan Kardec,
Análise de Documentos Biográficos, pág. 52.
(9) ABREU, Canuto, O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica
e Lendária, pág. 127.
(10) Casado, em 1832, com a instrutora primária Amélie
Boudet, que enfrentou todas as dificuldades que sua condição
feminina criara, ele tinha carrados de razões para discordar
dessa desigualdade de direitos, seus esforços em favor da educação
feminina não puderam ir além de um pequeno pensionato de
mocinhas (demoiselles) que ele e sua mulher fundaram e dirigiram,
na zona suburbana de Paris. (Jornal Universal
L'Illustration, 27º ano, vol. 53 - Paris, Sád. 19, Abril 1869,
pág. 237 in Allan Kardec vol. I, Wantuil e Thiesen, pág. 127).
(11) KARDEC, Allan, Relatório da Caixa do Espiritismo, Revista
Espírita, julho de 1865, pág.161.
(12) in WANTUIL/THIESEN, Allan Kardec vol. III, pág. 138.
(13) LUCE, Gaston, Léon Denis, o Apóstolo do Espiritismo, pág.
27.
(14) No dia do funeral de Amélie, diversas lideranças espíritas
se pronunciaram, entre elas Leymarie. (WANTUIL/THIESEN, Allan
Kardec vol. III, pág. 159.
(15) A Caixa Geral do Espiritismo era uma espécie de fundo
financeiro, fonte de recursos para o gerenciamento das atividades
do movimento espírita.
(16) KARDEC, Allan, Revista Espírita, maio de 1869, pág. 152.
(17) A Comissão de Redação era presidida por A. Desliens.
(18) WANTUIL/THIESEN, Allan Kardec, vol. III, pág. 156. A Federação
Espírita Brasileira editou em 1975 uma versão resumida pelo
escritor Hermínio C. Miranda, com o título Processo dos Espíritas.
(19) Processo dos Espíritas, págs. 72 a 75.
(20) BODIER, Paul e REGNAULT, Henri, Gabriel Delanne, Vida e
Obra, págs. 21 e 22.
A partir de 15 de junho esse texto estará disponível, em sua
versão integral, no site PENSE - Pensamento Social Espírita:
www.viasantos.com/pense