Artigo de José Rodrigues - Maio de 2001
Há algo de novo, no mundo das relações
humanas, com a desmaterialização do trabalho, como se estivéssemos
no caminho de retorno ao sentido da propriedade. O conceito de
valor, ao sair do substantivo para o virtual, varre o planeta de
forma já irreversível, subverte conceitos clássicos de
legitimidade e desafia teóricos sobre o ponto de chegada. A
informática, atrelada à internet, ao valorizar o conhecimento
acima de todas as coisas, parece que provoca o estímulo à divisão
da propriedade, como nenhuma doutrina política o conseguiu. Ou
será que a tecnologia tem um poder filosófico até então
desconhecido? Pois está lançada a sentença: na internet ninguém
é dono de nada e todos são donos de tudo. Garotos imberbes,
cheios de despojamento, estão prontos a decodificar qualquer
sistema de proteção de programas para espalhar a informação
pelo mundo, socializando a propriedade.
Alguns exemplos recentes dão corpo à teorização. Um deles,
mostrado pelo sistema conhecido por Napster, lançou o mercado
livre da música. Você se cadastra no sistema e automaticamente
se associa a milhões de outras pessoas no mundo (até poucos
meses atrás eram mais de 20 milhões) para receber e enviar músicas.
Sem qualquer custo. Os grandes
da indústria fonográfica sairam na defesa dos direitos autorais
e até poderão obter alguma vitória, que será apenas parcial.
Muito dificilmente, de forma definitiva. John Perry Barlow,
especialista em música e informática, sobre o caso, escreveu
artigo publicado na revista InfoExame, no qual afirma: Nenhuma
lei pode ser imposta com sucesso a uma imensa população que não
a apóia moralmente e que possui meios fáceis para sua evasão
invisível.
Barlow, contudo, busca uma nova moral para a história. Na medida
em que essas propriedades virtuais são copiadas e pirateadas,
ganham impulso globalizante, atingem rapidamente pontos que a
intenção comercial não imaginava. A livre proliferação
da expressão comercial não diminui seu valor comercial,
diz. Em raciocínio semelhante, ele cita que Sófocles, Dante, da
Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes,
Bach todos encontraram motivos para sair da cama
pela manhã, sem esperar pela propriedade das obras que criaram.
Outro exemplo é o do mapeamento de genoma humano. Ao lado do que
pareceu uma frustração geral o fato de os pesquisadores terem
encontrado apenas 30 mil genes, quando pensavam em 100 mil, número
aquele bem próximo dos disponíveis numa mosca, houve acirrada
competição entre um projeto público e outro particular. Com a
diferença de poucos dias, a humanidade se livrou de uma patente
empresarial que poderia render bilhões de dinheiro a um grupo de
acionistas. O elemento salvador, no caso, mais uma vez, foi a
informática e, junto dela, a internet.
Quem narra o resumo da competição é o sociólogo Manuel
Castells, no texto A vida sob custódia, publicado no
suplemento Mais! da Folha de S. Paulo de 01/04/01. Professor de
sociologia na Universidade da Califórnia, autor entre outros
livros de A Sociedade em Rede, Castells puxa a
disputa para sua área. Em termos de genes, acaba afirmando que
o modo como vivemos determina aquilo que somos,
pressupondo que a diferença do homem sobre os outros seres não
está no número, mas na interação dos genes consigo mesmos,
com o meio ambiente e o meio social. Mas como se deu a competição?
A primeira iniciativa, em 1990, do mapeamento do genoma humano,
partiu de um consórcio científico internacional, com instituições
públicas financiadoras dos Estados Unidos e do Reino Unido e
participação de cientistas e centros de pesquisa
norte-americanos, europeus e japoneses. Ocorreu que, em meados da
década, cientistas-empresários norte-americanos perceberam o
grande filão da informação, pois o mapeamento do corpo humano
pode identificar suas fraquezas, abrir o caminho da cura e
desenvolver um ótimo negócio. Esses cientistas formaram a
Celera Genomics, que se propôs a concluir o programa até o
final de 2000, antecipando-se ao empreendimento público, que
falara em 2003. Houve pânico no mundo científico, diz Castells.
O que aconteceria se uma empresa privada patenteasse o
genoma de nossa espécie, ou pelo menos parte dele?, perguntou
preocupado.
Foi quando o professor sir Francis Watson, Prêmio Nobel, diretor
do programa público, ordenou que o Genoma Humano concluisse o
mapeamento imediatamente, ainda em 2000. Mas, como? O salvador da
pátria foi um doutorando de nome James Kent, de 41 anos, que
obteve verba para comprar 100 computadores e pôr todo mundo a
trabalhar no mapeamento. Em apenas um mês, de 22 de maio de 2000
até 22 de junho, foi escrito o programa GigAssembler, com 10 mil
linhas de código, ganhando por três dias de diferença a
corrida com o Celera. Quinze dias depois, o programa estava
disponibilizado na rede mundial de computadores no endereço
genome.ucsc.edu
Manuel Castells atribui essa vitória à generosidade de Kent, em
espalhar o trabalho entre muitos colaboradores, sob um sentido de
propriedade coletiva, bem ao estilo da internet. Nossa espécie,
portanto, se autopreserva (ou pelo menos preserva a informação
para tanto) graças mais a seu instinto de solidariedade que ao
de competição. Não é um mau começo paraa nosso conhecimento
do genoma humano, conclui.
Os espíritos que trabalharam para formar uma filosofia disseram
que propriedade legítima é aquela que foi adquirida sem prejuízo
para ninguém. Há todo um envolvimento, nesse discurso, para se
evitar a cobiça, a ambição e o ganho fácil. A internet é um
meio, uma propriedade que se tornou comum e seria querer demais
utilizá-la, globalmente, com fins de dominação. Por isso,
todos que ali vão e participam, devem saber onde estão, um
mundo virtual com sua realidade... a multiplicação interagindo
com a divisão do conhecimento, a maior propriedade. Interpreto o
momento como o de patentear-se a generosidade e abrir-se caminho
para uma nova economia.
José Rodrigues, jornalista e economista, é um dos coordenadores
do site Pense-Pensamento Social Espírita.
A partir de 15 de junho esse texto estará disponível no site
PENSE - Pensamento Social Espírita:
www.viasantos.com/pense