Artigo de Marcelo Coimbra Régis - Julho de 2001
Nos últimos tempos o mote do movimento mais
progressista dentro do movimento espírita tem sido a atualização
do Espiritismo. Temos discutido se devemos atualizar, se vale a
pena atualizar, como atualizar etc. A CEPA se posicionou
oficialmente a favor da atualização do Espiritismo em seu último
congresso em Porto Alegre.
Passada a fase de alinhamento quanto à conveniência da atualização
do Espiritismo acho que podemos passar à ação e começar a
discutir alguns temas relevantes à sociedade e, ao nosso tempo,
os que requerem um posicionamento do Espiritismo. Tenho
refletindo sobre o fato de o Movimento Espírita ser sempre
levado de roldão pelas descobertas da ciência e nunca ter se
antecipado a nenhum debate. Temos reagido sempre assim aos fatos
depois que as descobertas são feitas, procurando encaixar
a explicação espírita. Como exemplo disso não tivemos nenhum
debate mais profundo sobre aborto, eutanásia, transplantes,
fecundação in-vitro etc., temas que afetam nosso entendimento
do mundo e das relações espírito-corpo.
Temos agora uma grande oportunidade de mudar esse quadro. O
incipiente campo da engenharia genética nos oferece essa chance.
A evolução das pesquisas e as novas descobertas e técnicas
nesse campo irão com certeza modificar muitos de nossos padrões
morais e éticos.Devemos nos antecipar aos fatos e abrir um
debate sobre as implicações ético-morais da engenharia genética.
Mecanicismo, Vitalismo e Organicismo
No histórico da biologia e das ciências da vida sempre tivemos
um conflito constante, pendular entre vitalismo e mecanicismo,
ora um ora outro tomando a frente nas discussões e propostas
científicas. Os avanços da engenharia genética deram muita força
ao mecanicismo, pois oferecem apoio científico à proposição
mecanicista-materialista de que a vida seria produto das reações
físico-químicas no âmbito celular e o organismo produto da
somatória de suas partes constituintes (nesse caso as células).
Em oposição, a proposta vitalista se baseia na existência de
um componente não-físico para explicar a vida. Reconhecendo que
o organismo é mais do que a soma de suas partes constituintes, o
Vitalismo propõe a existência de campos, energias extra-fisicas
de forma a manter a estrutura e governar as funções corporais.
Hoje já se discute uma terceira via, também materialista, porém
menos mecanicista, o organicismo. O organicismo, assim como o
vitalismo, entende que a vida é mais do que a somatória de reações
fisico-químicas no âmbito celular, propondo que o todo (corpo)
seria maior que a somatória de suas partes (células). Porém,
os biólogos organicistas, ao contrário dos vitalistas, oferecem
como explicação o entendimento da organização, ou das relações
organizadoras, tal como uma teia auto-suficiente de inter-relações
entre órgãos, células, tecidos etc. onde cada parte representa
o todo e o todo é contido em todas as partes.
A posição espírita é claramente vitalista ao oferecer como
componente extra-corpóreo o perispírito e o espírito, ambos
como muita atuação nas funções orgânicas e na sustentação
da vida.
Engenharia Genética e Projeto Genoma
A engenharia genética teve um momento de grande repercussão ao
oferecer a possibilidade de manipularmos o corpo e suas características.
E mais ainda, ao propor que até mesmo características psicológicas
estariam governadas pela seqüência genética, em franco apoio
ao materialismo e ao determinismo. O momento de maior repercussão
desse proposta o sucesso da clonagem da ovelha Dolly, mostrando
ao mundo a possibilidade de criarmos um ser completamente novo,
sem utilizarmos os tradicionais métodos da reprodução sexuada.
Estaríamos brincando de Deus como se referiram
alguns cientistas e teólogos. Nasceram daí esperanças de que a
vida e o corpo poderiam ser determinados a partir da seqüência
de genes e que, num futuro próximo, poderíamos escolher não só
nossas características físicas, mas também as inclinações
morais. Após o mapeamento do genoma humano tal pretensão
arrefeceu um pouco, pois foi constatado que não temos tantas
informações assim em nosso código genético e que o mesmo é
muito similar ao de animais muito inferiores ao homem. De
qualquer forma, apesar desse tropeço, é fato que as características
físicas são determinadas por nossa herança genética e muitas
de nossas doenças têm cunho genético. Outro fato que devemos
reconhecer é que as pesquisas nesse campo irão apenas aumentar,
em volume e velocidade.
Espiritismo, Moral e Engenharia Genética
Ao estudarmos o ser humano, não é possível separá-lo em
partes estaques: corpo e alma. O ser humano é um todo somente
entendido por suas relações entre corpo/espírito e vice-versa.
Esse complexo espírito/corpo está em constante inter-relação
e não se pode conceber um sem o outro enquanto encarnados.
Ressalto esse ponto de forma a justificar a importância moral de
nossa forma física. Chego a afirmar que nossa moral, que nossa
ética, em muito, advém de como nosso corpo é constituído e de
como mantemos o seu funcionamento. Muitos problemas morais têm
como ponto de partida (ou como elemento catalisador) nossas
características físicas. O racismo é claramente a expressão
moral de ódio potencializada por uma diferença física. O mesmo
se dá com a discriminação sexual. Portanto, apesar de
acreditar que a engenharia genética não vai derrubar a
necessidade do Espírito na formação do ser humano, é certo
que o mundo vai passar por muitas transformações morais devido
à manipulação genética que temos a nossa frente.
Devemos reconhecer que as pesquisas nesse campo vão avançar,
queiramos nós os espíritas ou não, debatamos o tema ou não.
É certo que teremos a nossa disposição neste século
tecnologias e ferramentas ainda não imaginadas, portanto temos
de nos preparar para analisarmos o que queremos no nosso futuro.
Apesar de a ciência disponibilizar diversas ferramentas, cabe a
nós, a sociedade, decidirmos o que é bom eticamente e o que não
é, ou seja, podemos decidir como humanidade o que vamos e o que
não vamos admitir. O mesmo ocorreu com as descobertas no campo
da energia atômica. Apesar de termos disponíveis vários meios
de destruição total, temos escolhido não utilizá-los por
reconhecermos que eles causam mais problemas que soluções ao
ser humano e à natureza. O fato de que através da engenharia
genética podemos brincar de Deus não diminui nossa
responsabilidade em decidir como sociedade o que faremos com essa
tecnologia.
Portanto, devemos iniciar esse debate no meio espírita o quanto
antes, formulando propostas e posições ético-morais frente aos
avanços da engenharia genética, oferecendo alguma ajuda aos espíritas
e à sociedade em geral.
Como forma de incentivar o debate vamos analisar alguns aspectos
ético-morais que devem ser alterados devido à engenharia genética.
Eugenia
É bem possível que num futuro bem próximo os pais possam
escolher várias características genéticas para seus filhos.
Com a descoberta das correlações entre genes e doenças é também
provável que os pais tentem de tudo para que seus filhos não
tenham tendências ao desenvolvimento de doenças hereditárias
tais como: a Síndrome de Down, a anemia celular falciforme, o
Mal de Parkinson etc.
À primeira vista teríamos a promessa de um mundo melhor, livre
de doenças hereditárias, a medicina realmente focada na cura e
não no tratamento, e teríamos vidas mais longas e saudáveis.
Porém, devemos considerar o outro lado dessa moeda: poderíamos
estar diminuindo a biodiversidade, estar alterando
irrevogavelmente a cadeia gênica humana e ter conseqüências
imprevisíveis devido à manipulação genética. Imaginem que
todos os seres humanos possuam o mesmo cromossomo
antienvelhecimento como forma de aumentar nossa expectativa de
vida. E se ocorresse que esse cromossomo nos deixasse vulneráveis
a um vírus ainda desconhecido. Se esse vírus entrasse em nós
poderia matar a todos.
Engenharia Genética e Mercado
Temos também todo um lado econômico a ser analisado e como será
distribuído o conhecimento. Já temos várias patentes genéticas
que restringem a utilização das técnicas apenas a seus
detentores. Dessa forma está se criando mais um mercado, a
manipulação do código genético sendo acessível apenas a quem
possa pagar. Teríamos o risco de consolidar a diferença entre
ricos e pobres também no campo genético, um quadro assustador,
mas bem possível.
Hoje as diferenças econômicas já são impressas na constituição
física do indivíduo, pois os filhos de famílias mais abastadas
se alimentam melhor e, portanto, têm mais condições de
desenvolverem suas habilidades físico-intelectuais. Porém no
futuro poderemos ter essas diferenças realmente impressas no código
genético. Os filhos de famílias mais ricas, por terem acesso a
manipulação do código genético, seriam possuidores de genes
com predisposições a menos doenças, a uma melhor performance
intelectual, maior expectativa de vida etc. o que tornaria o
fosso entre ricos e pobre mais pronunciado, físico e muito mais
difícil de ser transposto.
Preconceito e Privacidade
O acesso ao código genético pode iniciar uma nova onda de
preconceitos econômicos e sociais. Já se fala no uso de informações
genéticas no recrutamento e seleção de pessoal nas empresas.
Além disso, seguradoras já utilizam informações genéticas
para determinar o risco a ser pago na adesão aos seguros de saúde.
As conseqüências da disseminação dessas práticas são
claras: nenhuma empresa estaria disposta a oferecer emprego ou
plano de saúde a uma pessoa com alta probabilidade de
desenvolver alguma doença séria e cara. Podemos estar gerando
um novo preconceito: o preconceito genético.
Outra grande possibilidade e utilidade da engenharia genética é
a formação de bancos contendo informações genéticas de todas
as pessoas. Ao nascermos seriam colhidas amostras e as informações
genéticas armazenadas em bancos de dados. Tais informações
seriam muito úteis na solução de crimes, no tratamento de doenças,
na identificação de possíveis doadores de órgãos etc. De
fato, já existem alguns desses bancos na área militar, no FBI e
em alguns hospitais aqui dos Estados Unidos. Apesar das boas
intenções desses bancos de dados genéticos, temos aí mais um
potencial risco: o da quebra de sigilo genético e da invasão de
privacidade, portanto mais uma questão ética. Não tendo
controle sobre seus dados, as informações individuais podem ser
utilizadas para fins não tão nobres, como chantagem, manipulação
política, exposição de fraquezas e problemas.
Outras Questões
A engenharia genética ainda toca em muitas outras questões ético-morais,
tais como: separar o ato sexual da procriação, a unicidade de
cada vida humana (podemos ter linhagens de clones com os mesmos códigos
genéticos), planejamento genético total, eliminação de fetos
e embriões com alguma característica genética não desejada
(será que não poderíamos perder aí muitos gênios? Quem
decidiria o que é aceitável e o que deve ser eliminado? A genética
está no campo das probabilidades e não das certezas).
A lista de alterações é grande e nela podemos incluir ainda os
alimentos transgênicos, a criação de órgãos humanos em
animais para facilitar os transplantes, a criação de animais
transgênicos etc.
Espiritismo e Engenharia Genética
Por tudo que expusemos acima, fica claro que a engenharia genética,
por mexer com os seres vivos, toca diretamente no campo de estudo
do Espiritismo. Ou seja, o espírito. Como ficam as leis da
reencarnação diante da clonagem? E a existência de princípios
espirituais nos animais e vegetais, frente às criações de
laboratório (tomates com genes de vacas, porcos com órgãos
humanos, animais sem a possibilidade de reprodução natural
etc.). Como aplicar as leis morais frente aos novos desafios? Que
sociedade queremos no futuro? Como lidar com pais que, por amarem
seus filhos, querem evitar que eles tenham doenças hereditárias,
porém colocando em risco a biodiversidade ou gerando mais
preconceitos? Como garantir o acesso a essas tecnologias para
todos na Terra? Como evitar que uma ditadura da genética seja
instalada? Como evitar que ainda mais o foco do ser humano seja
seu corpo, sua aparência e não sua espiritualidade e suas
qualidades morais?
Os campos de estudo e aplicação da engenharia genética
expostos acima não são meros contos de ficção científica,
improváveis hipóteses. Todos, sem exceção, já estão
ocorrendo em nível experimental. A velocidade das pesquisas,
turbinada pelo crescente interesse econômico nesse promissor filão
é garantia que esse século verá muitos avanços nessa área.
Portanto urge que os espíritas debatam o tema, se antecipem a
ele e firmem posição a ser defendida na sociedade.
O interessante desse momento é que estamos reconhecendo de forma
global que podemos nos antecipar à tecnologia e até determinar
o que queremos. E outros já estão fazendo o mesmo. Hoje temos
uma disciplina (Bioética) que se dedica ao debate das conseqüências
humanas das inovações tecnológicas nos campos das ciências da
vida. Além disso, vários teólogos e cientistas têm discutido
essas questões, num entendimento de que a tecnologia não é
isenta, neutra e deve ser debatida do ponto de vista de suas
aplicações morais.
Quem sabe o próximo Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita
ou o próximo congresso da CEPA não sejam ótimos fóruns de
debate sobre esse tema? Atualizar o Espiritismo é colocá-lo em
sintonia com nosso tempo e oferecer caminhos e propostas que façam
sentido ao homem do século 21. As conseqüências da engenharia
genética, com certeza, se enquadram nesse escopo.
Marcelo C. Regis é engenheiro e colaborador do Abertura. Reside
em Portland, ME - Estados Unidos. E-mail: mregis@maine.rr.com