Artigo de Jaci Régis - Dezembro de 2001

A Emancipação da Mulher e o Espiritismo

Os avanços na emancipação da mulher foram conquistados por elas mesmas, a custo de muita controvérsia, ataques e incompreensões. Estamos falando da cultural cristã, ocidental.
Como foi possível pensar-se que haveria harmonia no mundo, que atingiríamos um patamar de civilização superior, deixando de lado, excluindo, mais da metade dos seres humanos?
As conquistas das mulheres rompem com um paradigma ignóbil, secular, através de todas as culturas. Todavia, a Igreja cristã não rompeu com as pressões culturais e o cristianismo não criou, quando se implantou, condições para que as mulheres tivessem acesso à cultura, ao poder e ao saber. Ao contrário, as reprimiu.
A mulher, sob o ponto de vista de moral cristã e, certamente também pela cultura islâmica, é considerada a serpente que instalou o pecado no mundo. Adão, na teologia foi influenciado por Eva e esta é quem, afinal, precipitou a expulsão do paraíso, pelo administrador Jeová. A Igreja chegou a duvidar se a mulher tinha alma.
A sexualidade está no meio dessa tragédia. Objeto sexual dos homens, as mulheres sempre estiverem presentes na história, ora como heroínas, ora como prostitutas, a mais das vezes como prostitutas, mesmo sem sê-lo, sempre que rompiam, certos primados moralistas e colocavam em cheque o poder masculino.
Marcos do processo de emancipação feminina no Ocidente:
1. Direito a votar
2. Educação em todos os graus
3. Profissionalização, a princípio para determinadas profissões e, hoje, sem barreiras. 
4. Liberação sexual
5. Participação política, social e empresarial.
As estruturas culturais estabelecem certos primados que se cristalizam nas mentes e permanecem através dos tempos, produzindo comportamentos que tornam o injusto em justo, os insensatos em sensatos. A divisão do trabalho entre e homens e mulheres, embora não uniforme em todas as culturas, privilegiou o homem e concebeu uma forma de dominação a que, devido às pressões culturais e religiosas, foi absorvido, aceito e transmitido, mesmo pelas próprias mulheres.
Por isso, sempre que esse modelo é rompido, instala-se a inquietação; as mudanças de paradigmas confundem e abrem, para a maioria, em determinado momento, um abismo de dissolução social, de perda de limites.
Com o tempo, quase sempre, as coisas se acomodam, com largo período de transição em que o rompimento se transforma em transgressão, dando oportunidade à exaltação de certos instintos reprimidos.
Hoje, nos regimes muçulmanos, a mulher é objeto sexual e reprimida inclusive com chicote, com obrigação de cobrir corpo.
Mas a cultura ocidental também discriminou o corpo. Objeto de censura pela Igreja, estabeleceu uma dicotomia entre alma e corpo. Este, devido a ser veículo da sexualidade, foi considerado objeto de concupiscência, de pecado. Escondê-lo, não tocá-lo mesmo, em alguns situações, era providência de salvaguarda do pecado.
O corpo da mulher, especialmente, foi objeto de ordenações moralistas, incluídas em livros sagrados das religiões. 
A partir do término da Segunda Guerra Mundial, todavia, o corpo da mulher foi cada vez mais exposto, até chegar à nudez completa em teatros, televisão, cinema e revistas, quando não em público comum.
A emancipação de grande parte da mulher ocidental, porque há muitas ainda sob o regime repressivo, direto ou indireto, aceito e concedido por sociedades específicas, marca o desenvolvimento da cultura dos países do Ocidente.
Fatalmente chegará às culturas islâmicas e, mais tarde, à africana, incluindo aí também o mundo asiático, tão cheio de nuanças e labirintos comportamentais.
Lembremo-nos de que na China, por exemplo, nascer mulher é um estorvo que justifica o sacrifício de meninas ou seu abandono. No resto da Ásia, a mulher perambula entre o islamismo e crenças múltiplas, que chamaremos para simplificar, de budistas, onde o casamento é um negócio entre famílias e a mulher objeto, precisando, em muitos casos, de dotes para conseguir um marido.
Na África, a mutilação do clitóris nas meninas é produto da ignorância e da negação do prazer às mulheres. Aliás, a negação do prazer sexual da mulher foi prática adotada também pela cultura ocidental, que pregava que o orgasmo feminino era sinal de inferioridade moral.
A emancipação da mulher, como vemos, não é simples questão de progresso social e libertação de uma grande parte do gênero humano. Implica em mudanças radicais nas estruturas sociais, familiares, religiosas e humanas. Resulta na inclusão e modificação de costumes, leis, formas de relação, direitos e deveres.
Poderia Ser Pioneiro, Mas...
O Livro dos Espíritos, em 1857, consagrou a emancipação da mulher como sinal de progresso da civilização. Mas poderemos afirmar que a emancipação da mulher é que produz o progresso, pelo menos em grande parte.
822-a – De acordo com isso, para uma legislação ser perfeitamente justa deve consagrar a igualdade de direitos entre o homem e a mulher?
– De direitos, sim; de funções não. É necessário que cada um tenha um lugar determinado; que o homem se ocupe de fora e a mulher do lar, cada um segundo a sua aptidão. A lei humana para ser justa deve consagrar a igualdade de direitos entre o homem e a mulher; todo privilégio concedido a um ou a outro é contrário à justiça. A emancipação da mulher segue o processo da civilização, sua escravização marcha com a barbárie. Os sexos, aliás, só existem na organização física, pois os Espíritos podem tomar um e outro, não havendo diferenças entre eles a esse respeito. Por conseguinte, devem gozar dos mesmos direitos.
A questão 822-a deve ser analisada em duas partes. A primeira é contextual. Refere-se ao momento social, político e religioso da época, pois ao estabelecer as funções do homem e da mulher de forma tão radical, está superada pelos fatos.
A segunda, ao contrário é permanente, universal. Trata da emancipação da mulher como direito adquirido a ser reconhecido necessariamente como sinal de progresso e civilização.
Infelizmente o movimento espírita, cuja identidade jamais foi realmente libertadora, por copiar, absorver e aceitar as diretrizes da cultura cristã, não promoveu, pioneiramente, a emancipação da mulher.
Basta ver alguns exemplos. 
Em 1939, respondendo a uma série de questões, o Espírito Emmanuel, tido como o orientador do movimento espírita brasileiro, deu respostas que integraram o livro O Consolador, no qual sedimenta o desejo de roustainguistas e cristãos, de transformar o Espiritismo numa religião e onde, de modo geral, desconhece a orientação de Kardec.
Inquirido sobre o movimento feminista, na questão 67, ele afirma.
A ideologia feminista dos tempos modernos porém, com suas diversas bandeiras políticas e sociais, pode ser um veneno para a mulher desavisada dos seus grandes deveres espirituais na face da Terra. Se existe um feminismo legítimo esse deve ser o da reeducação da mulher para o lar, nunca para uma ação contraproducente fora dele. É que os problemas femininos não poderão ser solucionados pelos códigos do homem, mas somente à luz generosa e divina do Evangelho.
Seguindo essa orientação, o movimento espírita em geral, fixou-se em pontos hoje superados e o foram pela força da opinião pública, pelo esforço de “materialistas” e contra as pressões da Igreja e outras religiões, inclusive o Espiritismo-cristão.
Na questão 189 do mesmo livro, respondendo sobre O que deve fazer a mãe terrestre para cumprir evangelicamente os seus deveres, conduzindo os filhos para o bem e para a verdade? Emmanuel, depois de enumerar algumas das tarefas sacrificiais e superlativas que a mãe deveria desempenhar, conclui: Buscará na piedosa Mãe de Jesus, o símbolo das virtudes cristãs, transmitindo aos que a cercam os dons sublimes da humildade e da perseverança, sem qualquer preocupação com as glórias efêmeras da vida material.
A figura da Virgem Maria foi tomada pela Igreja como símbolo de perfeição, de virtudes excelsas, enfim, como o exemplo maior a seguir, sexual e mundanamente.
Esse modelo infelicitou as mulheres e foi usado machistamente pelos poderes da religião católica para sufocá-las, tanto quanto o Alcorão tem sido usado para mantê-las à margem da sociedade, sob o tacão do homem.
Vejamos algumas posições do movimento espírita sobre a questão feminina:

Divórcio – Embora Kardec já o aceitasse, os religiosos espíritas sempre foram contra. Alegaram que todos os casamentos eram preparados antes da encarnação e tinham no bojo o compromisso de resgatar erros do passado, devendo, pois, serem mantidos a qualquer custo.

Controle da natalidade – Os religiosos espíritas se postaram contra, por ferir a lei divina e acreditavam que o número de filhos teria sido combinado antes da encarnação e que o casal não temesse que fora desse limite não teriam filhos. Por isso a pílula anticoncepcional foi rejeitada. Só passou a ser aceita quando Frâncico Cândido Xavier, no famoso programa da TV Tupi, Pinga Fogo (1971), foi a favor.

Sexualidade em geral e da mulher em especial – As análises são geralmente moralistas e fora do contexto real.
Vicejaram nos meios doutrinários as mesmas histórias sobre o papel da mulher como regeneradora do homem.
Lembro-me de uma historiazinha, creio que num folheto editado pela FEB, na qual a cena se passa numa estrada onde um homem preguiçoso estava deitado, enquanto uma mulher passava levando um fardo. Um observador perguntou ao Instrutor qual seria o destino daquela mulher. E ele disse: casar-se com o preguiçoso para regenerá-lo.
Poderíamos chamar o movimento espírita de machista e as mulheres espíritas, até algum tempo atrás (e quantas já se libertaram?) de acomodadas com as histórias dos erros da vida passada, com a conformação com casamentos castradores em nome do resgate de dívidas.
Esse engessamento da vontade é contrário à Lei Divina.
Claro que sempre se falou do livre-arbítrio, mas com o dedo em riste sobre as conseqüências da liberdade. Por isso, ainda hoje se diz que é melhor agüentar o peso da frustração para gozar no Além ou em outras encarnações.
Ensino Atual, Mas...
Os ensinos espíritas de modo geral são muito atuais. O problema tem sido a sua interpretação muito conforme aos princípios do cristianismo, por sua natureza castradora da mulher. Na Igreja só os padres têm o poder divino. As mulheres eram servas e muitas desterradas, pela falsa fé, aos conventos carmelitas onde se privaram do ar, da vida, da sexualidade, do amor, para perder-se em orações infindáveis por onde tentavam canalizar a energia vital reprimida.
Não podemos esquecer o quadro das realidades espirituais que as múltiplas vidas nos apresentam. Mas aprisionar o Espírito a possíveis erros e “pecados” do passado é castrá-lo e é, por fim, uma atitude negativa.
De modo gral, o movimento espírita é conservador no sentido de que se separa da realidade existencial, política e humana, centrando-se no comércio com os mortos, na assistência social e na evangelização, no seu sentido mais estrito de salvação e superação pela privação dos problemas da alma.
As palestras são de modo geral superficiais e doutrinantes.
Allan Kardec disse que pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto do que qualquer outra doutrina, a secundar o movimento de regeneração. (A Gênese - cap. XVIII, item 25).
De duas uma. Ou Kardec estava delirando, pensando num Espiritismo atuante, progressista e revolucionário ou os dirigentes espíritas não têm capacidade, disposição ou cultura para entender o que ele pretendeu para a Doutrina.