Artigo de Jaci Régis - Setembro de 2001

O Edifício

Os aplausos ainda ecoam.
Na sala ensolarada estou só, sentado, olhando em torno.
Cada pedra daquele edifício foi acompanhada, sonhada, vivida.
As pessoas vieram para a inauguração. Atraídas por motivos vários.
Muitas vieram me cumprimentar... “muito merecido... afinal você tem dado sua vida a esta obra...”
O prédio está vazio e eu ali, sozinho, absorvendo, dias depois da inauguração, as energias vitais impregnadas nas cores que marcam cada andar de forma especial...
Outro sussurra aos meus ouvidos “é como se fosse um filho”.
Erguido à custa de muito esforço, não direi sacrifício, mas de esforço, denodo, determinação, o belo prédio desponta na avenida movimentada como marco da obra assistencial espírita que tem sido o cenário de um trabalho de mais de 40 anos.
Fecho os olhos e vejo-me, 41 anos atrás, começando o trabalho na comunidade. Jovem, compromissado com o Espiritismo, adentrava a instituição num momento crítico. E ainda viveria mais alguns meses de tensão, devido ao choque de opiniões.
No prédio tosco e adaptado, de então, que servia de sede, reuniam-se dezenas de pessoas na composição de seu conselho e me vi na condição de secretário pesquisando a breve história, seis anos apenas, em que o Lar Veneranda saíra do sonho de Antonio Freitas Costa, para tornar-se uma entidade com planos inalcançáveis, mas com destino definido no tempo.
O tempo escorre como a areia entre os dedos. Lembro-me a decisão de jovens, de assumir a direção, arcar com a responsabilidade de uma obra destinada a criar creches, em nome da união dos espíritas.
— Ele não agüenta três meses, vaticinou um inconformado da hora, quando fui eleito presidente.
Já são 41 anos de colaboração.
Cenas passam enquanto o silencio do edifício é banhado pelo sol e inundado de um perfume de simpatia e solidariedade. Sinto-me tranqüilo. O clima silencioso me faz sentir bem, sentado, sozinho.
Na porta de vidro, reflete-se minha imagem. Envelheci. Cabelos brancos, mas ainda bastantes, contornam a cabeça e através das lentes da memória vejo-me, todavia, como o homem de 29 anos que resolveu enfrentar o desafio. E sigo seus passos e olho os companheiros de início, os que ficaram e os que se foram.
Volto à imagem de agora e vejo que permaneci fiel a mim mesmo.
E não foi fácil. Se quisesse olhar as pedras do caminho, as invejas e os tropeços, minha visão se apagaria e eu não teria visto o caminho percorrido.
Levanto-me e sigo nas recordações. O térreo é de cor suave, dado para o canarinho. O amplo refeitório, iluminado, é um espaço alegre. E revejo o momento do brinde em que eu, sem saber bem o que dizer, levanto a taça, junto com dirigentes e todos se voltam para o momento de descontração, de vinho e doce...
Subo as escadas e os andares, azul, verde, pêssego, apontam esperanças de que em breve pelos corredores, salas e auditório trafeguem moças e rapazes, homens e mulheres, em busca de aprendizado e de estudo da obra de Kardec.
— Aqui, lembro-me explicando, ficará o Instituto Cultural Kardecista, disse apontando o escritório, auditório e sala ainda vazios.
Uma senhora havia me dito “você merece... espero que tenha saúde para continuar esta obra maravilhosa...”
Chego ao terraço que alguém já programou um churrasco para não sei quando. No amplo espaço aberto, diviso prédios, residências ruas e avenidas, que nos integram com o movimento dinâmico da cidade.
Volto ao grande saguão de entrada, onde a larga porta de vidro deixa filtrar raios de sol. E me aproximo da cabeça de Allan Kardec ali colocada. Poderia, disse-me um amigo, ter sido um busto, uma esfinge, mas eu preferi a cabeça solta, projetando-se da parede de mármore. Olho o trabalho da escultora e me ligo mentalmente ao projeto que Allan Kardec desenhou para o Espiritismo.
E, novamente, me vejo fiel às suas diretrizes e me pergunto qual será o futuro da filosofia que ele fundou, que caminhos percorrerão os futuros adeptos diante dos apelos aos desvios que são perpetrados no seu ideal e na dificuldade de seguir-lhe com dedicação e humildade a trilha que delineou com segurança e nitidez.
E ainda ali, sentado outra vez, sozinho desde sempre, saboreio o momento de felicidade.
Não fiz uma oração formal, nem elevei meu pensamento de forma definida a Deus, aos amigos espirituais, ou aos que partiram deixando-nos saudade.
Deixei apenas que meu coração pulsasse.
Quando os amigos vieram dizer-me: o prédio terá o teu nome, balancei. Forjado no ideal de trabalhar sem recompensa e marcado pelo estigma de qualquer elogio parecia avivar a vaidade, constrangi-me.
Depois, aceitei com humildade.
Quando sai e fechei a porta, indo embora, na parede estava em letras marcantes: Edifício Jaci Regis. Vieram-me à mente as palavras que proferi no momento da inauguração: estando meu nome ou não no edifício, continuarei a ser o Jaci Regis de sempre.