Artigo de Jaci Régis - Abril de 2001
Fomos convencidos de que um Deus humano, sentado num trono no céu governava tudo. O céu, dentro do sistema geocêntrico, ficava encima e o inferno embaixo. Mas embora não exista nem encima, nem embaixo, a idéia permanece nas nossas estruturas mentais arcaicas.
Recentemente, a doença e a morte do Governador Mário
Cova mobilizaram a população em oração. Padres, pastores,
rabinos, umbandistas, espíritas, rogaram ao Todo Poderoso pela
saúde e pela vida do homem que governava o Estado de São Paulo.
A televisão mostrou milhares de crianças, mulheres e homens
arrebatados à morte e à miséria em Moçambique, devido às
chuvas que provocaram enchentes arrasadoras, aumentando a miséria
daquele país africano, envolto, como os demais em nebulosos
processos de maturação, disputas tribais e de poder.
Lembro-me bem da amargura de um amigo que, endurecido e
revoltado, em vão implorara a Deus que salvasse sua filha.
O Governador morreu, os moçambicanos estão na pior e a filha do
amigo partiu.
O silêncio dos céus foi ensurdecedor.
Essa postura diante de Deus, repetida em vários idiomas e religiões,
remete-nos mitologicamente ao homem primitivo, que se postava
temeroso e trêmulo perante o trovão ou diante das lavas dos
vulcões, tomados como manifestação da ira divina.
Desde então acostumou-se a fazer oferendas ao Todo Poderoso,
para aplacar suas iras.
Poucos são os que neste mundo não crêem na existência de
Deus.
Cada povo, cada época, cada instante da evolução pessoal e
coletiva, enfim, na marcha das civilizações, em permanente trânsito
para as mutações constantes, defrontou-se com a questão da
Divindade.
Os judeus, pastores primitivos, definiram, afinal, um deus único,
invisível. Foi esse deus vulcânico, incompetente, mas
Todo-Poderoso, que nos foi ensinado, conforme o cristianismo, e
que definiu o fluxo das concepções vitais, a partir do feito
deslumbrante de Moisés no Monte Sinai.
Consolidado na cultura do Império Romano, o cristianismo,
atendendo ao impositivo mitológico, transformou Jesus de Nazaré
na versão visível de Deus, na confusão da Santíssima
Trindade, além de fazê-lo ocupar o lugar do Cristo, no mito
judaico do Messias.
Afinal, com exceção dos judeus, todos os povos materializaram,
fizeram formas expressas de seus deuses para prestar-lhes culto.
Os egípcios viam seus deuses em formas semi-humanas. Os gregos
humanizaram de tal forma o Olimpo, onde Zeus reinava, que criaram
toda uma linguagem e toda uma mitologia, que está presente na
cultura ocidental.
Maomé, na linha do cristianismo também tornou Alá, invisível
O Deus Bíblico
Os tempos mudam, mas nossa postura diante da Divindade permanece
estanque. Continuamos, no fundo, apegados aos padrões que a bíblia
judaica nos trouxe, na tumultuada relação entre Javé, o deus
de Abraão e o povo hebreu Toda a concepção judaica de Deus está
baseada no seu poder discricionário. Deus, criador imperfeito,
sempre revisando sua obra e maldizendo o dia em que criou sua
criatura.
Jesus de Nazaré usou outros termos referindo-se a Deus,
chamando-o de pai e dizendo que ele amava
as criaturas e era tão zeloso com elas que não lhe caia um só
cabelo sem que ele soubesse...
Se antes Deus era temido, odiado e suportado sem alternativa,
acendeu-se uma luz, relaxou-se o pensamento Não estamos sós,
Ele vela por nós...
Na verdade, essas modificações aumentaram ainda mais o
conflito.
O Nazareno, segundo o evangelho, afirmou que Deus amou tanto o
mundo que enviou o seu filho primogênito. A expressão, como se
vê é falsa. Em primeiro lugar, no nosso modo de entender, não
há filho primogênito, concepção só cabível no
horizonte restrito da Terra como o universo e o povo judeu como o
escolhido.
Além disso, está subentendido que esse amor de Deus
representava uma espécie de relaxamento da ira divina em relação
ã criatura. É o que depreendemos dessa outra afirmativa evangélica.
...Ora sendo maus sabeis dar boas dádivas aos vossos
filhos, quanto mais vosso Pai Celestial.... Ou seja, a
misericórdia divina é uma exceção dada pelo seu coração
bondoso aos seus filhos, por ele criados, mas quase sempre
desviados.
O deus de Jesus é, portanto, diferente do deus Jeová. Este teve
ímpetos de acabar com a raça de víboras que somos todos nós.
Aliás, tentou liquidar a humanidade com o dilúvio, segundo o
relato bíblico .Mas também até aí falhou.
Todavia, como foi dito que Deus ama, protege, providencia, cuida
e é pai, nada mais natural que seus filhos que criou pela sua
exclusiva vontade, a ele se dirijam pedindo providências
particulares sobre doença, morte, o futuro e outros detalhes do
dia-a-dia. Então, por que esse silêncio ensurdecedor quando a
maioria esmagadora pede, suplica e não é atendida?
Para justificar esse silêncio, os sistemas religiosos afirmam
que Deus bem que poderia atender, mas não faz porque as pessoas
não merecem. A dor, o sofrimento, são remédios para a doença
endêmica da maldade que domina os corações humanos.
A criatura desde o início pecou, criou a culpa, fez mau uso de
seus instrumentos de vida e, por isso, Deus teve que castigá-la.
E por todas as gerações. O homem comum é mal, não obedece a
Deus.
A doutrina kardecista tenta avançar um pouco nesse espinhoso
caminho.
Desenhou todo um esquema da atuação divina, mostrando um
delineamento de progresso e evolução, do qual a pessoa é
responsável por si, num tempo sem limites., na busca da relativa
perfeição. A Providência Divina apenas propicia meios para que
esse processo se realize, através, por exemplo, da encarnação/reencarnação,
como instrumento de apreensão pela experiência de fatores
externos e internos, basicamente centrados no relacionamento com
o outro.
O sistema kardecista é racionalista. Tenta enquadrar a ação
divina e mesmo o progresso espiritual dentro de critérios
racionais. Entretanto, não é fácil desestruturar a mente,
trabalhada por milênios de entendimento, conceituação e pressão
cultural.
Milênios se passaram e nós, os Espíritos em processo de
autoreconhecimento e crescimento espiritual, fomos ensinados a
ver a Divindade como a um poder invisível, senhor da vida e
morte, de dificil comunicação, localizado em algum lugar
inacessível, cheio de intermediários que falam, discursam e
determinam em seu nome.
Fomos convencidos de que um Deus humano, sentado num trono no céu
governava tudo. O céu, dentro do sistema geocêntrico, ficava
encima e o inferno embaixo. Mas embora não exista nem encima,
nem embaixo, a idéia permanece nas nossas estruturas mentais
arcaicas. Qualquer um olhando as estrelas pensa que lá encima
fica Deus. O que levou o astronauta russo Gagarin, dizer que não
tinha encontrado Deus, mostrando que até os ateus pensavam no céu
lá encima.
As igrejas sempre se mostraram arrogantes, criaram seus líderes
como autênticos deuses. O papa católico é visto por milhões
como representante desse deus, embora tenha sido eleito pelos
demais cardeais. O aiatolá Komheine criou um estado teocrático
no Irã e agora o Teleban, no Afeganistão pretende impor uma lei
marcial-religiosa que cerceia a vida em nome de Deus.
Essa visão específica criou Deus à semelhança do homem e
vice-versa, criador de tudo, onipresente e onisciente, se tornou
sufocante e deu um sentido inquietador ao coração humano.
Por isso, mesmo a doutrina kardecista não pode livrar-se
totalmente do Deus bíblico e cristão. Kardec tentou, analisar a
Divindade dentro de padrões racionais. Mas a razão humana é
incapaz de fazer essa operação lógica e, além disso, o
universo, a Divindade, ou o que seja, não é apenas racional,
mas afetivo.
Deus é Indiferente
Desde o momento que o mundo se livrou da tutela da Igreja, que
coagia o Espírito, filósofos, políticos, cientistas, alguns
sacerdotes e teólogos, começaram a duvidar da forma como o deus
Jeová se transplantou para o cristianismo, não obstante as
modificações introduzidas por Jesus de Nazaré.
O Espiritismo apresenta uma interessante visão do processo
evolutivo, mas na prática, os espíritas de modo geral,
absorveram o modus operandi cristão e transformaram
a reencarnação em pena de talião e a Justiça divina em
contabilidade de erros e acertos; e a dor, o sofrimento, como
moedas de pagamento dos débitos das pessoas e das coletividades.
A visão estática da vida prejulgou que toda verdade tinha sido
revelada. Sem instrumentos e no nível de civilização agrária,
as Igrejas acreditaram que tudo estava descrito, determinado.
O imenso vazio entre as esperanças e a realidade, as contradições
entre o discurso moral e a realidade espiritual, eram coisas
de Deus, que convinha não mexer, nem muito menos penetrar.
O mistério era a chave mestra desse domínio total sobre as
mentes.
Por exemplo, Ptolomeu era um astrônomo e, entretanto, seu
sistema afirmava que a Terra era parada e centro do universo. Ele
partiu da observação visual, pela qual, de fato, a Terra parece
parada. Estamos sentados e não sentimos o globo rodar. Andamos e
não percebemos o girar do planeta sobre si mesmo e muito menos
em direção ao sol. Por isso ele concebeu seu sistema de acordo
com sua visão e de suas observações práticas.
Estabelecida essa verdade final pela autoridade
religiosa, guardiã da palavra de Deus, quem se atreveu a
contraria-la foi submetido ao castigo, à humilhação e
considerado herege.
Entretanto, a Terra não está parada, gira em torno de si mesma,
caminha para o sol e é apenas um pequeno planeta num universo de
tamanho inconcebível pela mente humana.
Portanto, é preciso compreender que a imagem e a atividade de
Deus foram concebidas dentro de uma estrutura que não mais pode
subsistir.
A incompreensão dessas mudanças conceituais, essa resistência
às transições permanentes do processo evolutivo provocam
atitudes que, guardadas as devidas proporções, é semelhante à
da Igreja em condenar Galileu Galilei.
Segundo os conceitos difundidos pelas religiões, (inclusiva a
espírita-cristã, roustainguista, chiquista e emmanuelina) a
Divindade é sensível à dor das pessoas e das coletividades.
Entretanto, no dia-a-dia, a Divindade é indiferente à dor das
pessoas e dos povos.
Deus certamente não mudou. O Universo, a vida, apesar das
descobertas, avanços e tecnologias, são, basicamente os mesmos.
Aparentemente a Divindade é indiferente à dor, ao sofrimento.
Isso decorre das posições estruturais desenvolvidas através
dos tempos. Queremos um pai que nos dê colo,
ansiamos por um ente superior que nos ampare, nos livre do mal e
que nos ame.
Nós não sabemos nada a natureza desse pai. Pensamos
nele como um homem, um Espírito ou que seja, um ser isolado,
colocado em algum lugar, dando ordens, providenciando coisas.
Reflito na necessidade de mudarmos nossa estrutura mental, para
nos adequarmos à nova visão da vida, mistificada, fraudada por
ignorância e pelos sistemas religiosos de todos os tempos,
Não digo que Deus não se importa., nem que e esteja
à parte da criação. Existe um fio condutor na história, mas não
da forma como gostaríamos. A identificação da Divindade com
cada um e com cada oportunidade parece definida por processos além
de nosso entendimento racional.
Os cristão autênticos criaram a escapatória da felicidade além-túmulo
num céu estático para premiar os bons e um inferno para punir
os maus. Cada um que se esforce em passar pela vida terrena ,
sofrendo seus males, até alcançar a morte, que seria a aspiração
suprema para os bons, pois só ela seria a porta da paz eterna,
mas certamente nada desejada pelos maiores candidatos ao
sofrimento sem fim.
Escrevendo essas coisas me sinto contando uma história da
carochinha.
Mas os espíritas-cristão não ficam atrás. Estão
absolutamente convencidos da inferioridade do ser humano e o
culpam por não ter, nesses últimos dois mil anos, se tornado
bom O sofrimento não é propriamente festejado, mas de certa
forma exaltado, como uma espécie de sadomasoquismo moral, para
purgar erros, pagar dívidas e aspirar uma promoção além túmulo
ou na próxima vida.
Também aí, tudo me parece extremamente sem base...
A Ciência e Deus
A ciência avança na descoberta de elementos fundamentais da
vida orgânica, dos sistemas celestes, na constituição genética
e até mental das pessoas. Muitos ficam assustados porque, na
imaginação da maioria, ela estaria ocupando o lugar que antes
era reservado à Deus. Mas a ciência não cria, descobre. Ela
desvenda o que existe e penetra em campos que eram, antigamente,
exclusivos da Divindade.
A ciência segue sem se importar com as crenças. Embora muitos
cientistas se digam propensos a aceitar um poder espiritual,
muitos deles pretendem desconhecer toda a história, querem
reescrever a criação, desejam ter o poder de mudar, modificar e
reconstruir as estruturas orgânico-mentais.
A subversão dos antigos conceitos sobre a criação levou a
mudanças profundas no modelo moral da sociedade. A criatura
humana, sempre vilipendiada pelas Igrejas, inclusive a espírita,
quer ter seu direito de opinar sobre si mesma. Entra em conflito
com padrões definidos como divinos, mas estabelecidos pelas
igrejas, que afirmam que a vida pertence a Deus e o homem não
tem poder sobre seu destino, traçado fora dele...
Amor, sexo, casamento, divórcio, aborto, eutanásia deixaram de
ser zonas proibidas ou divinas. É o fruto do livre-arbítrio,
ainda que leve, a princípio, à banalização que é a conseqüência
primeira do rompimento da coação mental, social e religiosa.
No princípio a Terra era o centro. Depois o sol, e agora, não
existe o centro do universo, mas uma multidão de galáxias se
expandindo no Cosmo. Todavia, multidões e igrejas, inclusive a
espírita, tentam manter as mesmas posições antiquadas e
arcaicas, como se nada houvesse mudado. Não conseguem intervir
para orientar. Recolhem-se na condenação ou no discurso
repressor.
Mas parece que não há volta.
A expressão coisas de Deus confirma a manutenção
de estruturas mentais arcaicas, separando o divino do profano,
uma. forma de se manter a ignorância.
Na altura dos acontecimentos qualquer profecia ou futurologia
sobre como as próximas décadas serão é especulação sem
sentido.
O que tem que ser será.
Allan Kardec afirmou que Deus não faz milagres, porque isso
seria derrogar a própria Lei que ele criou.
Portanto, a impassividade e o silêncio divinos podem ser apenas
formas que não conseguimos compreender dos mecanismo
operacionais da Lei. Ou para que saibamos que temos que resolver
nossos problemas. Que a solidariedade é o instrumento de recíproco
auxílio que permitirá a vida de relação; e haverá um limite
para que a banalização desencadeie a reação para uma posição
do meio, sem volta ao passado, por ser impossível e sem arrogância
que é destruída pela desestruturação das pessoas.
A Presença de Deus
Embora nos momentos de dor, sofrimento e angústia, a criatura
possa se sentir abandonada por Deus, quando não é ouvida, se
percebermos com serenidade veremos que, apesar desse silêncio,
persiste uma ordem, uma ordenação no encaminhar das coisas, no
decorrer dos tempos.
É como se fosse um grande quebra-cabeças cujas peças vão aos
poucos se encaixando, embora seja impossível determinar não
apenas a extensão, mas a profundidade desse quebra-cabeças.
Nessa altura, não podemos localizar um Deus-homem em um lugar
específico do Universo. Não temos nem imagem, nem conhecimento
da natureza da Divindade. Mas certamente podemos compreender,
ainda que limitadamente, que a imagem, a concepção e a forma
como Deus foi mostrado, pelo menos no cristianismo, não pode ser
mais mantida.
Existe uma Lei que abrange o universo e na qual todos estamos
inseridos. Essa sensação de solidão, decorre da inquietação
sobre a morte e o desejo de persistência da maioria. Existem o
mal e o bem, não como pólos excludentes, mas como condições
mutáveis em direção à plena satisfação pessoal, que a
sabedoria divina condiciona ao harmonioso relacionamento com os
outros.
O universo é baseado na solidariedade, nas leis de atração nos
conjuntos estelares e nos conjuntos humanos. Pertencemos a nós
mesmos, mas precisamos pertencer ao conjunto, nos inserir na relação
afetiva com os outros.
Ninguém quer sofrer e é natural que recorra a um poder que lhe
ensinaram ser arbitrário, que ora cede, ora endurece, que tem
ira e castiga. Na verdade, muitas se julgam injustiçadas porque
acreditam que não mereciam o sofrimento e as perdas que têm.
Reclamam da Justiça Divina dada como sábia e misericordiosa mas
que, parece, muitas vezes, premia o mau e castiga o justo.
As coisas, os problemas, enfim, os conflitos e contradições da
vida acontecem não porque estão delineados em determinismos
divinos, no sentido da alienação da pessoa, sob o império do
destino, maktub ou karma. Mas porque decorrem dos mecanismos das
leis ambientais e dos complexos processos mentais, nos quais o
Espírito elabora o mapa de sua vida, a partir de como se
posiciona no mundo e estrutura seu caráter.
As pessoas pedem a Deus que modifique o diagnóstico natural.
Quase sempre não são ouvidas Não há uma presença digamos
pessoal da Divindade, mas tudo gira em torno de
processo sincrônicos, atemporais, mostrando uma direção.
Ainda assim, fica sem resposta a razão da vida.