Artigo de Jaci Régis - Janeiro / Fevereiro de 2001
Já no fim da reunião, fomos alertados para um
novo anúncio. O homem que falava era relativamente jovem. Gestos
comedidos, mãos nervosas, falou sobre evento internacional que
será realizado em breve. A imagem do homem mexeu conosco.
O Botelho, quando regressávamos, no carro, disse:
Não sei se é preconceito, mas aquela forma de falar me
pareceu estranha. Talvez porque tenhamos mudado o modo de
exprimir nossos sentimentos dentro da Doutrina...
Amaro, por sua vez acrescentou:.
Às vezes temos comentado e mesmo criticado porque muitos
espíritas, colaboradores, expositores e tribunos adotam uma
forma de falar muito semelhante a dos sacerdotes de várias
religiões. Por que será?
Botelho interveio, comentando: esse modo de falar tem
caracterizado os espíritas que se autodenominam de evangélicos,
que parecem propícios a copiar ou adotar uma linguagem bem
característica...
Quando Kardec afirmou que o Espiritismo não tinha
características religiosas comentei, sabia o que dizia.
Insistindo no viez religiosos a tendência é copiar das
religiões gestos, formas e pensamentos que não se encontram na
doutrina. Essa forma de falar e escrever é decorrente da
influência dos textos de Espíritos que atuarem dezenas de anos
através do médium Chico Xavier. Eles criaram uma linguagem que
Herculano Pires chamou de melíflua e emoliente, formando uma
mentalidade místico-religiosa, dentro do que chama de espiritismo
evangélico.
Mas parece que todos os Espíritos, de todos os médiuns,
seguem a mesma linha, lembrou Amaro.
Isso é verdade, concordei. Mas tenho pensado que ligar o
entendimento do evangelho a esse modo de falar não é correto.
Afinal, os evangelhos na sua essência, trazem uma mensagem
positiva, firme e mostram um Jesus humano decidido, manso quando
se referia a necessidade de amar, enérgico, até mesmo quase
colérico quando indispensável. Ou, em síntese, autêntico,
comendo com publicanos, andando com gente de má fama social, sob
certa forma imponente diante do perigo.
Nesse caso, disse Botelho, como, afinal, qualificar essa
linguagem macia que flutua sobre palavras, melíflua, mística,
morna, persuasiva e sob certa maneira monocórdica?
Creio que a melhor qualificação seja chama-la de voz
clerical.
Voz clerical? Disseram em uníssono, Amaro e Botelho.
É isso aí, continuei. Todos os clérigos são levados ou
treinados a emitir suas opiniões de forma específica, típica
de maneira que logo se percebe que é um padre ou um pastor que
está falando. Devido ao fato histórico de que são considerados
porta-vozes do divino, destacam-se do comum, antigamente pelas
vestes e ainda hoje pelo gestual, pelo tom especial de suas
vozes. Afinal, na verdade são um pouco mais que humanos,
chamados por Deus, como gostam de dizer os pastores protestantes
ou representantes de Deus, como apregoam os padres da Igreja
católica e provavelmente de todas as igrejas e missionários,
como afirmam os cristãos espíritas.
Bem sei que palavra falada, comentou Botelho, é uma
emissão complexa, que transmite o pensamento, em sinais sonoros,
dentro do simbolismo de cada da língua...
Talvez por isso, interrompeu Amaro, o emprego de
estratégias diversificadas na oratória desses missionários.
Ora é contundente, dramática, enfática, ora mansa, persuasiva.
É rápida ou ritmada. Mas, de qualquer forma, permite uma
relação sintônica entre ouvinte e orador, de tal maneira que,
em muitas ocasiões, o poder indutor da personalidade do orador
produz resultados surpreendentes.
É claro que qualquer discurso é absorvido de acordo com
o interesse do ouvinte, complementei. Em boa técnica de
comunicação oral, para que se crie entre o orador e o ouvinte
um liame de compreensão, é necessário que este possa
decodificar a mensagem do falante. Os oradores mais bem sucedidos
nesses torneios de oratória, dizem o que os ouvintes querem
ouvir ou já ouviram. Como disse Freud, as pessoas gostam de
ouvir o que já sabem.
E você, perguntou-me Amaro sorrindo, não tem também sua
voz clerical? Afinal você faz seus discursos em muitos lugares
no Brasil e no exterior.
Ah! meu amigo, posso afirmar, sem qualquer dúvida, que
jamais adquiri o tom clerical. Embora tenha algumas experiências
muito marcantes nos encontros e desencontros desses discursos, o
mais emocionante de todos foi quando discursei para uma platéia
de centenas de jovens e recebi deles um aplauso profundamente
intrigante. Não foi, porém, um discurso dramático, mas
incisivo, objetivo e que resultou no livro Comportamento
Espírita.
Lembro-me desse dia memorável, concordou Botelho. Na
época eu era muito jovem e estava entre os que lotavam a
platéia.
Além disso, continuei, desde há muito faço apenas
exposições e, como expositor, sou apenas um produtor de idéias
discutíveis.
Houve um silêncio gostoso. Depois continuei.
Cada vocábulo deveria, segundo Allan Kardec, ter um significado
exclusivo, único. Mas as palavras ganham significados diversos
e, muitos casos, definem conceitos que se perpetuam. Por isso
ele, Kardec, tentou criar uma linguagem espírita, mas sucumbiu
diante da pressão cultural, apelando para que os espíritas
percebessem as nuances entre um significado consagrado e uma nova
idéia que, miseravelmente, precisa utilizar o mesmo vocábulo.
Quando essa percepção falha, a nova idéia é vencida pelo
significado consagrado, façam-se as adaptações que se fizerem.
Infelizmente, na minha visão, a linguagem clerical é
extremamente majoritária entre os espíritas e Espíritos.
Estes, como aqueles, guardam em suas memórias espirituais os
significados consagrados pelas suas andanças nas religiões e
filosofias que vivenciaram e tem sido difícil desvencilhar-se
delas.
E quando o Espiritismo se tornou uma religião salvacionista,
então, a linguagem clerical assomou de uma forma que parece
irreversível.