Artigo de Jaci Régis - Julho de 2001
Estruturar um Centro Espírita Filosófico
Quando,
no IX Congresso Espírita Paulista de 1986, foi discutido o tema
religioso, uma conhecida oradora espírita perguntou: se o
Espiritismo não é religião, o que é? Ela, como uma
grande maioria, acredita que a Doutrina Espírita se identifica
pela sua feição religiosa. Mas a resposta a essa pergunta foi
dada claramente por Allan Kardec: O Espiritismo é uma doutrina
filosófica e moral. (Revista Espírita, dezembro de 1868).
Lemos uma interessante definição da religião espírita:
A religião espírita é uma religião que tem doutrina, mas não
tem rituais, tem uma proposta prática, mas não tem clero, tem
princípios, mas não tem dogmas.(...) não fala em salvação,
mas em conhecimento, sabedoria, iluminação, portanto em
responsabilidade. Em suma, a religião espírita orienta para o
despertar da consciência cósmica, para o sentido de eternidade,
para a elevação moral, para o processo consciente de
espiritualização (Documento SBEE, ano XIV, nº 23
Curitiba-PR).
Tal definição aproxima-se muito mais de uma conceituação
filosófica do que religiosa. Mas se contradiz ao dizer que a
religião espírita, portanto, tem seu estudo e sua prática
ligados ao estudo e a prática do Evangelho de Jesus Cristo, que
é uma restrição ao universo do conhecimento e da sabedoria.
Tal definição filosófica, entretanto, não retrata com
fidelidade o panorama geral dos centros espíritas. A imitação
dos cultos e rituais católicos e protestantes mostra que na
mente da maioria não existem outras formas de expressão da fé.
Reconhecendo a sutileza da proposta do Espiritismo, relativamente
à fé e às práticas religiosas, Allan Kardec disse:
As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente,
isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza
grave dos assuntos de que se ocupa. Pode-se mesmo, na ocasião, aí
fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas
em comum, sem que por isto as tomem por assembléias religiosas.
Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é
perfeitamente clara, e a aparente confusão é devida à falta de
um vocábulo para cada idéia.
Em Obras Póstumas Kardec afirma O Espiritismo é uma
doutrina filosófica espiritualista. Por isso toca forçosamente
nas bases fundamentais de todas as religiões: Deus, alma e a
vida futura. Mas não é uma religião constituída. (Breve
resposta aos detratores do Espiritismo).
Então, as reuniões espíritas tratarão, certamente, de Deus,
da alma e da vida futura, mas sob a ótica dinâmica do
Espiritismo, mas o farão sem descer aos estilos das igrejas. E
ensina ainda Kardec: Para quem conhece a doutrina ela é,
de ponta, um protesto contra o misticismo, pois tende a
reconduzir todas as crenças para o terreno positivo das leis da
natureza. Mas, entre os que não a conhecem, há pessoas para as
quais tudo o que escapa da humanidade tangível é místico. Para
estas, adorar a Deus, orar, crer na Providência é ser místico.
Não temos que nos preocupar com a sua opinião. (Revista
Espírita, março de 1868)
Devemos nos preocupar não é com a opinião dos que desconhecem
a Doutrina e a confundem. Mas com os que se metem a organizar
centros espíritas sem conhecê-la. A igrejificação, com culto,
cerimônias e discursos condenatórios decorreu, além da pressão
cultural, da ignorância ou incapacidade de entender a nuança
proposta por Kardec.
Um Novo Centro Espírita
Tudo indica que a maioria dos espíritas seguirá determinada a
cultivar a religião espírita, os centros espíritas atuais
dificilmente mudarão sua estrutura, Mas, podemos pensar uma nova
orientação para os centros que se criem a partir de agora e que
pretendam desenvolver o Espiritismo como uma doutrina filosófica
e moral.
Nosso objetivo é analisar a questão proposta e mostrar que a prática
doutrinária, constituída, segundo Kardec pela comunhão
de pensamentos pode ser realizada sem decair para o
pieguismo místico e muito menos copiar, imitar ou trazer cerimônias
e rituais das igrejas para nosso meio.
Atendendo às diretrizes de Kardec, a busca de um novo padrão não
é apenas possível, mas factível, exigindo, todavia, uma nova
postura diante da Doutrina.
Vamos analisar algumas atitudes possíveis para dar base a um
novo centro espírita, que seja instrumento de uma mentalidade
libertadora.
Queremos provar que temas como Deus, alma, reencarnação,
imortalidade, mediunidade, podem ser abordados filosoficamente,
sem intelectualismo e com simplicidade, pois o formalismo místico,
a postura dogmática e a fixação em esquemas repetitivos
eliminao formalismo místico, a postura dogmática e a fixação
em esquemas repetitivos eliminam a possibilidade do crescimento
espiritual. Queremos mostrar que existem formas muito espontâneas
e positivas de expressar a fé.
A Prece
O Livro dos Espíritas afirma:
649 - A adoração é a elevação do pensamento a Deus. 659 - A
prece é um ato de adoração 660 - O essencial não é orar
muito, mas orar bem. 661 - As boas ações são a melhor prece,
porque os atos valem mais do que as palavras. 654 - Deus prefere
os que o adoram do fundo do coração... a intenção é tudo
pela Ele...(os que) pensam honrá-lo através de cerimônias que
não os tornam melhores... Essas pessoas julgam que todo o mérito
está na extensão da prece.
Devido a essas diretrizes é fora de dúvida que o Espiritismo
encontra na prece um instrumento de elevação da alma. Todavia,
isso não significa que ela deva ser banalizada e usada de forma
contrária ao sentido dado a ela pela Doutrina.
Por isso, no novo centro espírita, seu uso deve ser seletivo,
sincero e apropriado, sem ritualismo. Nas reuniões espíritas
desse novo horizonte doutrinário, a prece será um componente
natural, curta, objetiva, sincera e de coração, fruto da expansão
vibracional e afetiva dos encarnados como laço de agregação,
à divindade e aos Espíritos amigos,
Nas sessões públicas podem ser feitas preces, dentro de uma
forma natural, para harmonizar os pensamentos, sem panacéia ou
bordão de cantorias. Como o Espiritismo não está baseado em práticas
místicas, apagar luzes, tocar música, fazer preces de pé,
longas, lamuriosas, é contra seus princípios e não tem nada a
ver com Deus. Recordemos o que diz O Livro dos Espíritos: - Deus
prefere os que o adoram do fundo do coração, com sinceridade,
fazendo bem e evitando o mal, aos que pensam honrá-lo através
de cerimônias que não os tornam melhores para os seus
semelhantes.
Palestras
Nesse novo modo de sentir o Espiritismo, a palestra espírita não
será doutrinante, impositiva, assustadora. E muito menos
salvacionista. Mas tratará de todos os temas com cautela e
honestidade, com a produção de estímulos positivos e que levem
à reflexão, ao exame de cada um.
A interação entre o expositoresos expositores e os ouvintes será
a base do ensino e por isso, as palestras deverão ser
coloquiais, reflexivas e intrigantes, fazendo pensar, com troca
de idéias entre a platéia e o orador, de forma organizada e bem
dirigida.
A moral espírita está claramente delineada em O Livro dos Espíritos.
Quem a conhece percebe que de modo algum é moralista, extremista
ou inflexível. Ao contrário, expõe, estabelece conceitos e
diretrizes para a reflexão e assimilação natural dos que
desejam segui-la.
A palavra tem um efeito poderoso, dentro do quadro emocional de
cada pessoa. Análises negativas e pessimistas não encontram eco
no pensamento kardecista, que tem como meta a vida futura, isto
é, a natureza mutante, progressiva e permanente do Espírito.
O novo centro espírita estará aberto às realidades sociais,
mas saberá manter-se acima dos partidarismos e das precipitações,
tanto da ciência como de idéias prematuras, seguindo o que
Kardec estabeleceu. Entretanto, embora seguindo o movimento
progressista, é mister fazê-lo com prudência e evitar
entregar-se às cegas aos devaneios, utopias e novos sistemas.
Importa fazê-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde e com
conhecimento de causa.
Na análise dos valores morais, o evangelho e Jesus terão parte
importante, dentro da forma como Allan Kardec tratou, razão pela
qual o novo centro espírita não será uma ascembléia evangélica,
nem se fixará na interpretação dos textos do evangelho, como
única, exclusiva e definitiva fonte da verdade.
A figura de Jesus de Nazaré será resgatada da prisão
conceptual cristã do Cristo, do Messias judaico universalizado,
que é produto das distorções perpetradas pelo sistema cristão
O ensino moral do Espiritismo, quando restrito ao evangelismo e a
cristolatria, deturpa a dinâmica doutrinária, e decai ao
extremo e linear esquema que procura culpa e pecado, expiação e
prova, nas ações humanas, bem como as razões das dificuldades
da pessoa no passado, enquadrando tudo no pagamento das dívidas
com a Justiça Divina.
Quando se abandona o tom coloquial e a interação, perde-se o
essencial da proposta doutrinária que é criar pessoas
conscientes, ativas e participantes. Não se quer, nesse novo
centro espírita, platéias desvinculadas que ouvem mas não
escutam, porque não participa, nem comentam ou perguntam, nem
ouvintes que suportam a preleção, como um sacrifício imposto
à obtenção do passe espiritual.
Estudo Sistemático
É impossível ser espírita sem um embasamento teórico, sem
leitura, sem participação em reuniões de análise, debate e
pesquisa dos princípios doutrinários, comparativamente aos
progressos da ciência e do pensamento filosófico.
O estudo sistemático da Doutrina foi preconizado por Kardec,
desde o início de seu trabalho. Todavia, esse estudo sistemático
será desenvolvido de maneira dinâmica, grupal, interativa e
propiciando a abertura das mentes, a pesquisa e a busca
diferencial da verdade, a partir dos princípios espíritas.
Daí a necessidade de manter permanentemente cursos de introdução
e aprofundamento do pensamento de Kardec, como medida básica de
preservação e expansão do Espiritismo, de forma interativa e
dinâmica. Quanto aà qualificação dos expositores, é um outro
problema.
O Papel dos Espíritos
Não se pode fazer Espiritismo sem os Espíritos. Mas isso não
significa subordinação aos Espíritos na condução e orientação
do centro. Nem a transformação de médiuns em pessoas
especiais. Na verdade, deve haver uma associação, uma troca mútua
de idéias, entre encarnados e desencarnados, em um nível de
igualdade. A equipe espiritual será necessariamente kardecista,
ou seja, ter conhecimento e desenvolver o estudo do pensamento de
Kardec. Devemos ter em mente que a grande maioria dos Espíritos
não é espírita.
O intercâmbio com os desencarnados é útil, necessário e
integra indissoluvelmente o pensamento kardecista. Por isso tem
que ser feito dentro desse pensamento. Seguindo as diretrizes de
O Livro dos Médiuns, quando a análise, o controle e o
aproveitamento real dessa interação, com fins de elevação
espiritual.
O Passe, a Cura e a Consulta
Sem dúvida, um centro bem orientado pode ser um grande auxiliar
na solução de problemas obsessivos e psicológicos, desde que
tenha competência, e aja com o cuidado e o respeito que merecem.
O passe é uma transmissão energética que não necessita de
nenhum ritual. É simples imposição de mãos ou cautelosa
distribuição energética pela aura da pessoa. Precisa de um
ambiente tranqüilo, saudável, arejado, respeitoso. Não é
necessariamente um ato mediúnico, o que exime de incorporações
e outras formas mediúnicas.
A sua eficácia é variável. Depende de fatores vibracionais
entre o emissor e o receptor das energias. A banalização do
passe e sua ritualização éA banalização do passe e sua
ritualização são uma excrescência perpetrada contra o
verdadeiro Espiritismo.
O novo centro espírita tratará tanto do passe como das questões
relacionadas à cura, à desobsessão e às consultas
espirituais, com criteriosa atenção, evitando repetir os erros
cometidos pela falsa caridade em supor que os Espíritos e a
Doutrina sejam uma panacéia e, portanto, possam cuidar, curar e
resolver os problemas pessoais. Esse novo modo de sentir o
Espiritismo não se envolverá com atos médicos. É mais
prudente e saudável.
O amadurecimento dos centros bem orientados elimina a ânsia de
curar. A mediunidade de cura é melindrosa, dificildifícil e
exige não apenas uma moral elevada, honestidade total, mas
rigoroso controle, como aliás toda a expressão mediúnica. Além,
é claro, de médiuns competentes.
A consulta espiritual, com fins de orientação e diagnóstico da
obsessão, é um processo válido, mas depende muito do grupo e
do Espírito que se propõe a orientar. Este deve ter equilíbrio
e humildade, provados e vigiados. Aconselhar é um ato delicado.
Orientar requer experiência e equilíbrio. Tarefa sensível por
representar ingerência na vida alheia e por o nome do
Espiritismo em jogo.
Conclusão
Nosso objetivo é mostrar que a prática doutrinária, constituída
segundo Kardec pela comunhão de pensamentos, pode
ser realizada sem cair no pieguismo místico e muito menos
copiar, imitar ou trazer cerimônias e rituais das igrejas para
nosso meio.
O formalismo é tão nocivo quanto o excesso liberalismo.
Trabalhando com vibrações sutis, sobre as quais o pensamento e
a atitude exercem poderosa influência, as reuniões privativas
ou públicas devem aliar a espontaneidade e o equilibrado sentido
de seriedade dos fatores em jogo.
A exemplo da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, os núcleos
realmente espíritas não são entidades religiosas, casas de oração,
igrejas ou santuários. Compete-nos organizá-los de forma
atuante, serena e eficiente, como uma sociedade civil bem
organizada.
Nem se pense que o novo centro espírita será uma academia
intelectual, nem um núcleo de pseudos-sábios. A comunidade espírita
que imaginamos tem que operar de forma dialogada e interativa. E
a relação interativa não é apenas intelectual, mas afetiva,
emotiva e generosa, preparando pessoas para participar ativamente
na relação humana, social, caridosa.
Daí ter Kardec enfatizado a necessidade de haver uma afinidade
conceitual entre seus membros, o que não exige nem perfeição
e, muito menos, cobrança recíproca de comportamentos. Talvez
sejam esses os predicados mais nobres a serem alcançados pelo
grupo doutrinário.
Quando Allan Kardec orientou a organização de núcleos doutrinários
pensou em grupos pequenos. A organização desse novo centro
dificilmente atrairá centenas e milhares de pessoas, como
acontece em muitos centros espíritas cristãos que perderam a
ligação genuína com o Espiritismo. Giram em torno de Espíritos
e pessoas, médiuns ou não, que personalizam as idéias, apenas
genericamente referenciados ao pensamento de Kardecas idéias,
apenas genericamente referenciadas ao pensamento de Kardec.
Portanto, podemos criar reuniões seguras, alegres,
comunicativas, respeitosas, como expressão de uma filosofia
baseada na reflexão, na busca da verdade, capaz de evoluir e
dar, a todos nós, momentos de prazer espiritual, de ensinamentos
plausíveis.