Artigo de Jaci Régis - Agosto de 2000

Visão Libertadora

Ela me olhou e falou, com uma forma muito engraçada:

— A visão do kardecismo que você deu me libertou.... Espero que esteja certo para que, quando chegar "lá", eu não me arrependa....

Era uma mulher de seus 50 anos. Estava em pleno processo de readaptação a uma nova vida.

Sua existência trazia saldos bastante precários. Não que tivesse descuidado de seus deveres. Jamais. Esmerou-se em ser boa mãe.

Entretanto, como certas personalidades, diante dos desafios da vida, não soube como lidar com a afetividade. Participante de uma família hesitante quanto ao afeto e à unidade conceitual, provavelmente estremeceu  com as próprias emoções.

Decidiu, então, racionalizar o afeto, com uma visão rígida de si e da vida, em nome da moral e das tradições familiares

Tendo, bem cedo, discordado das teses católicas, chegou ao Espiritismo. E no Espiritismo real, onde oradores, Espíritos e escritores, de modo geral, afirmam que as pessoas estão no mundo para pagar suas dívidas e que serão penalizadas se não se comportarem de modo irrestrito. Essa pregação reforçou  seus medos afetivos. Devia manter-se de tal forma que ao terminar a vida terrena saísse sem muitos erros, com uma folha limpa de procedimentos justos.

Por isso manteve sua inflexibilidade, quase secando a sensibilidade e desenvolvendo um olhar para o mundo muito frio e cheio de insegurança, muito amargo.

Na conversa, lembrou sua incursão, depois de muitos anos do Espiritismo brasileiro, num terreiro de Umbanda. Estava, na ocasião, sob grande pressão emocional. Uma vizinha convidou-lhe para participar de uma sessão em terreiro umbandista.

Ali, confessou-se. Pela primeira vez, sentiu-se à vontade. Em meio ao ritual, deixou-se levar pelos sentimentos represados. Abandonou a auto-vigilância, deixou de lado os compromissos moralistas que havia elegido e a tornara infeliz. O ritual tocou-lhe a alma e naquela noite chorou como nunca houvera chorado. Continuou muitas vezes a freqüentar aquele local, encontrando nele um espaço em que não se sentia cobrada, nem cerceada.

Por que seria que, afinal, o terreiro lhe ofereceu aquela oportunidade de extravasar sentimentos? O que ocorreu para que ela, enfim, abrir-se afetivamente?

Os rituais umbandistas, com danças e músicas com compassos bem marcados, influem nos mecanismos mentais e criam um ambiente saturado de sensualidade. Envolvendo-se naquele ambiente  toda a sua sexualidade castrada veio à tona, explodindo  o afeto tanto tempo sufocado. Naquele momento ela foi a mulher sexual que negara a vida inteira.

A rigidez conceitual geralmente está a serviço de mecanismos de defesa patologizados.  Nela pode-se  sufocar sentimentos internos de ordem afetiva, que se aceitos provocam culpa e medo de que as emoções sentidas sejam "sujas" ou "pecadoras".

Em decorrência, o corpo se enrijece, a mente se aprisiona a comportamentos que, aparentemente, são muitos sadios, mas que, por fim,  adoecem a alma, por impedir o fluxo natural das emoções, tanto físicas quanto espirituais. E o medo sublimado em comportamentos inflexíveis, cria o  isolamento e gasta energias em cuidados extremados, mantendo uma distância afetiva com as pessoas mais próximas.

Foi o aconteceu com ela. De modo algum pode culpar-se por não ter dado carinho, atenção extremada à saúde, à educação dos filhos. Levou-os mesmo à infância espírita. Entretanto, faltou-lhe permitir-se uma certa fragilidade afetiva, um dar-se sem medo e um equilibrado relacionamento consigo mesma.

Não se pode programar a vida artificialmente. Foi que aconteceu. Ao elaborar uma programação para os outros, um receituário teórico, ainda que bem intencionado, criou um interregno, um hiato, um espaço entre ela e os outros.

Agora a  libertação mental abria-lhe um novo caminho de respeito a si mesma, seus sentimentos, seus desejos, seu corpo, sua alma. Contudo, ainda era cercada de um certo medo.

As estruturas mentais sedimentadas em determinada visão da vida perduram e resistem. Afinal,  aprendemos e consolidamos a idéia de que estamos neste "vale de lágrimas", porque  somos pecadores e devedores de Deus.

O conhecimento de um kardecismo não rígido, sem pregar a culpa, nem o castigo, mas valorizando a vida e a oportunidade de crescer, sem medo de errar, mas esforçando-se para acertar, trazia-lhe, de novo, uma visão aberta, não castradora da doutrina de Allan Kardec.

Viver um vida mais liberta e nem por isso desequilibrada permite uma atuação existencial mais madura e mais produtiva. Essa liberdade interior não significa irresponsabilidade. Como a responsabilidade não pode ser entendida como um fardo pesado que tira a alegria, o brilho da vida.

A liberdade é o único caminho da ascensão espiritual, mas também tem que significar a libertação das amarras do egoísmo e a entrega ao sentimento, à emoção.

Pois o sucesso, mesmo precário de nossa existência, depende do envolvimento do coração e da mente, enfim de todo o ser, no próprio projeto de vida, única forma de comunicação afetiva e efetiva de nossos propósitos e sonhos, libertando o amor que existe em nós.

Às vezes a felicidade, ainda que imperfeita, pode ser vivida, quando aprendemos a respeitar nossos sentimentos e vencer inibições artificiais.