Artigo de Jaci Régis - Janeiro/Fevereiro de 2000

Para Deus, Tudo é Possível

O automóvel que ia na frente exibia um colante: Mas para Deus tudo é possível. O que pretenderia o dono daquele veículo, com essa demonstração publicitária de sua fé ? Que passaria em sua mente sobre o a divindade ? Que pensaria sobre o poder de Deus, relativamente à sua vida? Seria porque ele queria ou desejava ou supunha que sua crença lhe daria segurança sobre os perigos, as doenças?

Nada demais, se Deus tudo pode, não há porque não desejar suas graças, granjear sua simpatia. A crença no poder discricionário de Deus está inscrita na cultura e na consciência mitológica de cada um de nós. Por isso a relação com a divindade é delicada. Pois esse poder infinito pode abater-se, sem piedade, sobre a criatura, tanto quanto pode suspender todo o mal que queira lhe prejudicar.

A civilização cristã tem dois deuses: o deus Jeová dos judeus e o Deus-Pai de Jesus de Nazaré. O primeiro é o que, de maneira geral, domina o entendimento. O segundo é, ainda, uma metáfora, porque raramente as pessoas encontram-no como o Pai carinhoso, amoroso e justo, que o Mestre disse que é.

A frase mas para Deus tudo é possível é da bíblia, representa o pensamento sobre Jeová. A frase Deus amou tanto este mundo que enviou seu filho unigênito, é a expressão afetiva e generosa com que o Nazareno falou sobre a solicitude divina.

A bíblia judaica, que serve de guia para a civilização ocidental, cristã afirma que Deus foi o criador de tudo e que seu espírito balouçava sobre as águas; e da imensa e intensa escuridão, ele disse: faça-se a luz e a luz se fez.

Parece que a dificuldade de Jeová foi em lidar com as pessoas. Quando criou o Éden, o povoou com um único e solitário homem, Adão, mas esqueceu que ninguém pode ser feliz sem o outro. E teve de criar Eva.

Suas criaturas o tornavam furioso. Destruiu cidades e chegou a inundar o mundo para afogar a maior parte de suas criaturas, com as quais “estava por aqui...” na tentativa, aliás falha, de começar tudo de novo.

Esse deus vulcânico é, ainda, o deus nosso de cada dia. Que suavizamos com o pensamento de Jesus sobre sua generosidade, amor e misericórdia, nos momentos de calma.

Mas, diante de nossas lágrimas, de nossas dores, nos momentos cruéis de solidão e padecimentos, onde está Deus?

A resposta a nossas preces e nossos rogos é, geralmente, o silêncio.

Embora teoricamente se pretenda desvincular a idéia de Deus de um ser definido, enfim, um homem, qualquer um que a ele se dirige, pensa-o como tal. Quando se ora o Pai Nosso, a figura desse pai é de um homem, porque o Deus cristão e, creio, de todos os credos, é um homem, Quando nos referimos a “ele”, pensamos num ser a nossa semelhança, que está em algum lugar do universo.

Certamente, na minha visão particular, tão precária quanto qualquer outra, o poder de Deus é ilimitado, mas penso que a relação divina com a humanidade não é particular. Não creio num Deus propriamente humano, embora seja difícil desvinculá-lo dessa visão . Percebo, dentro de uma pálida lucidez, que não sendo um ser determinado, sua força se espalha indistintamente, razão porque aparentemente a divindade é surda aos nossos rogos, insensível às nossas dores e silenciosa aos nossos pedidos.

Não consigo pensar num Deus que saiba , particularmente, que eu existo. Todavia, permaneço sobre sua ação justa, não sei se generosa, no sentido mais ou menos sentimental que essa palavra indica, porque tento pensar numa relação menos frágil com a divindade.

Ou seja, tento abandonar a idéia de que devemos agradecer a Deus por nos dar a vida, que é propriedade dele que pode tirar a hora que quiser e outras formas de dependência do arbítrio divino, que é a base do pensamento geral sobre a razão de viver.

Racionalmente pode-se crer num Deus construtor, como queria Nieztche, mas é mais dificil crer-se num deus moral. O que o Espiritismo faz é ampliar os horizontes da vida, mostrando a obra divina sob uma visão dinâmica.

E se não sentirmos Deus como uma pessoa, como o sentiremos?

Essa é uma outra história, daquelas que não tem um fim cordial, porque nada sabemos sobre a divindade.

Todavia, não consigo imaginar a vida, o universo, a natureza sem uma diretriz fundamental. Flammarion afirma que se vê Deus na natureza. Eu, além disso, vejo-o na laboriosa jornada da humanidade. Pois é nesse coletivo que engloba as vontades pessoais e as supera, que percebo uma “mão divina”, dirigindo a humanidade, lentamente, mas sem detença, num rumo de constante aperfeiçoamento.

Claro que o sofrimento, a angústia, as dificuldades do coração e da mente que permanecem como identificação da realidade de cada um, são espinhos dolorosos, tanto quanto a morte, deixando-nos entregues ao sabor das circunstâncias, sem podermos, em muitos casos, e especialmente na morte, fazer nada.

O próprio sentido da vida não é espontaneamente desenhada na alma de cada pessoa, mas elaborado na filosofia e nas reflexões possíveis, conforme os sistemas tentam explicar a existência terrena.

Talvez por isso, frases como a que lia no colante do automóvel sejam necessárias para espantar o medo do desconhecido, a fragilidade da existência diante da morte, da doença e do sofrimento.

Deus existe e é causa primária de todas as coisas.

O que se acrescenta a isso, as elucubrações, reflexões, visões, são detalhes sem significação maior, mormente para os que se sentem injustiçados, abandonados pelo poder absoluto de Deus.

Uma coisa é certa. A vida nos foi dada e fomos colocados na corrente vivencial para desenvolvermos a nós mesmos e isso depende, já agora, do nosso viver.