Artigo de Milton Medran Moreira - Novembro de 2000
Nova Versão
No exato momento em que realizávamos em Porto Alegre o Congresso
da C.E.P.A., propondo o início da discussão sobre a
atualização do espiritismo, meu amigo Homero Ward da Rosa, de
Pelotas, RS., enviava-me reprodução de notícia lá veiculada
pelo bispo Jayme Chemello, presidente da CNBB, dando conta de
que, com o aval daquele organismo, prepara-se uma nova tradução
da Bíblia, com nova linguagem, mais apropriada para o Brasil.
Chemello justifica com a argumentação de que o livro sagrado
judaico-cristão nunca foi escrito em português. A tradução
foi feita a partir de edições escritas em aramaico, hebraico,
grego e latim. E que o texto, atualizado e escrito em bom e
moderno português, favorecerá o entendimento dos cristãos.
Diante da notícia, Homero se pergunta: se até a ortodoxia
cristã já vem, há muitos anos, sentindo a necessidade da
atualização, como pode haver em nosso meio pessoas contrárias
a isso relativamente ao espiritismo?
Fundo e Forma
Não sei como a Igreja no Brasil vai fazer essa atualização de
linguagem. No caso da Bíblia isso implica em enorme risco de
descaracterização. Porque, na verdade, a Bíblia, queiram ou
não os cristãos, ao lado de preceitos éticos e morais
sublimes, abarca conceitos que, à luz dos modernos parâmetros
de civilização, são de um anacronismo que vai além da
questão da forma e deixa clara sua intrínseca contaminação
atingindo o próprio fundo. Aquele Jeová furibundo e
emocionalmente instável, que se melindrava com qualquer ofensa e
que distribuía prêmios e castigos arbitrariamente modificáveis
ao sabor dos atos de bajulação, dos sacrifícios e das
oferendas de seu "povo eleito" (conceito ainda vigente
na cristandade), por melhor que se aprimore a linguagem, não
conseguirá jamais se adaptar a uma concepção pelo menos
humanista de Deus. Para que seja resgatada a dignidade do homem
cristão, ele será obrigado por muitas vezes a recusar a forma e
também o fundo de suas escrituras.
Divina ou Humana ?
Não é isso o que ocorre com a questão da atualização do
espiritismo. Em primeiro lugar, há um consenso entre nós no
sentido de que a obra de Kardec é intocável. Inclusive as
traduções que temos, umas de maior qualidade que as outras,
são, no geral, fiéis ao espírito do texto original. Alterar a
obra de Kardec seria um atentado ao direito autoral e um crime à
sua memória. Mas a revelação espírita não é uma revelação
religiosa e, portanto, inalterável. Pode-se dizer que ela é
divina? De certa forma, sim. Na mesma medida que o é toda
descoberta científica. Toda verdade contém, em sua essência, a
presença divina, impregnada que está dessa "inteligência
suprema, causa primeira de todas as coisas". Mas, como disse
Kardec, é humana a sua elaboração, desde sua origem, produto
que foi do intercâmbio entre a humanidade encarnada e
desencarnada, e em todo os seu contínuo processo de
aperfeiçoamento. E, exatamente por não ser religiosa e nem se
situar no campo do sagrado mas sim, no terreno do natural, é que
ela reclama contínuo aprimoramento. Como tudo na Natureza.
Dessacralização
Quando Copérnico lançou sua teoria de que a Terra não era o
centro do universo, Lutero chamou-o de "astrólogo
vigarista", e Calvino, invocando o salmo "o mundo
também está determinado e não pode ser mudado",
perguntava: "Quem ousará colocar a autoridade de Copérnico
acima da autoridade do Espírito Santo?". Pouco depois,
Galileu Galilei, para se livrar da fogueira, teve de renunciar ao
heliocentrismo. Seria a força da revelação científica e não
a revelação religiosa, parte da qual é tão claramente
contrária ao progresso da ciência e ao humanismo, que iriam
confirmar, depois, essa e a tantas outras verdades que contrariam
não só a letra mas também o espírito do que está contido na
Bíblia. Não é simplesmente adaptando traduções à linguagem
atual que os cristãos resolverão esses problemas. É admitindo
a pluralidade das fontes, as presumivelmente sagradas e as
claramente profanas, como reveladoras do conhecimento. Mas,
quando chegar a admitir isso, a religião terá se feito laica.
De tanto esvaziar-se, sua caixa de mistérios nada mais conterá
do que o natural. Quando isso acontecer - e fatalmente
acontecerá - a religião estará vivendo exatamente o processo
que, hoje, o espiritismo, mesmo com resistências, está apto a
impulsionar: o de sua dessacralização.