Artigo de Milton Medran Moreira - Outubro de 2000

Opinião em Tópicos

Dona Clementina

Há muito devo uma crônica para dona Clementina. Até nem sei como deixei passar tanto tempo. Mas, esses dias, mexendo em livros mais antigos de minha biblioteca, me deparei com aquele velho exemplar de "O Evangelho Segundo o Espiritismo", com uma carinhosa mensagem firmada por ela e datada de 12.05.74. Imediatamente me reportei à cena: uma senhora simpática que procurara os serviços profissionais do jovem advogado de então. Conversa vai, conversa vem, ela se revelou espírita. E, como viu que eu me interessara em conhecer mais sobre a doutrina que professava, já na consulta seguinte levou-me o livro com simpática dedicatória. Curioso! O texto escrito por ela refere-se à obra "O Céu e o Inferno", o livro de Kardec que trata da "justiça divina segundo o espiritismo", que Dona Clementina, por certo, achara mais adequado oferecer a um advogado. Mas, por engano, ela me brindou com "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

O Engano

Para um ex-seminarista, uma interpretação espírita da mensagem moral de Jesus caiu bem. Quem sabe, até, se o engano de dona Clementina não foi obra dos espíritos para amolecer o coração de um ex-católico que, decepcionado com a religião, se tornara um agnóstico. Bem, depois parti para o conhecimento de outras obras de Kardec. "O Livro dos Espíritos" foi a que mais me impressionou, pela solidez de seus argumentos e, principalmente, pela dialética perspicácia daquele pedagogo francês, capaz de elaborar perguntas tão pertinentes, questionando os espíritos sobre assuntos do seu e de todos os tempos, discutindo com eles numa linguagem destituída de eruditismos, cristalinamente singela, mas sempre profunda e nunca vulgar, acerca de importantes temas da ciência, da filosofia, da psicologia, do direito e da ética. Nasceu aí em mim uma profunda admiração por Kardec, que só quase dez anos depois me levaria a uma adesão ao Espiritismo e uma efetiva atuação em seu movimento.

Onde andará ?

Vinte e seis anos depois, onde andará dona Clementina Benso (esse seu nome completo, grafado com uma letra de bom talhe na dedicatória que me fez)? Estará ainda entre nós? Em caso positivo, deverá estar bastante idosa, pois já tinha alguma idade na época. Pouco sei dela. Os arquivos dos primórdios de minha atividade advocatícia há muito joguei-os fora. Não havia computadores então, e papéis, mais cedo ou mais tarde, a gente termina por destruir. Só sei que Dona Clementina era colaboradora da Sociedade Espírita Allan Kardec, de Porto Alegre. Dela, assim, não guardo mais que a lembrança da enorme simpatia que irradiava, do entusiasmo com que falava acerca do Espiritismo e, como referência material, o livro que me dedicou pensando se tratasse de outro. Mas isso foi o bastante. O suficiente para despertar em mim o interesse, primeiro, e o amor, depois, pelo Espiritismo, que só muitos anos após passaria a ser o mais importante referencial de minha vida.

Um Beijo

Mas, neste momento que todos reconhecemos tão rico no processo de desenvolvimento das idéias espíritas no Brasil, e quando eu próprio me vejo, de repente, mais do que nunca, e bem mais do que poderia sequer supor, envolvido nesse processo de expansão daquelas idéias cujas sementes foram em mim plantadas por ela, tenho pensado muito em dona Clementina. E onde ela estiver, quero que receba meu beijo muito afetuoso. Há diversas formas de divulgar o Espiritismo. E, dentre elas, existe aquela que eu poderia classificar de "o método Clementina", que não é o de fazer proselitismo à toa, mas, precisamente, o de lançar a semente no solo que formos capazes de perceber ofereça condição à sua germinação. A esta altura de minha vida, depois de ter sido católico, agnóstico, espírita cristão e, por fim (ou, por enquanto), espírita somente, estou convencido de que há milhões de homens e de mulheres potencialmente preparados para cerrar fileiras conosco. E que só não o fazem por falta de uma dona Clementina em suas vidas.

Milton R. Medran Moreira é advogado, jornalista e presidente da CEPA. E-mail: medran@pro.via-rs.com.br