Artigo de Milton Medran Moreira - Julho de 2000

Opinião em Tópicos

Guerrilheiros da Intolerância

Não me perdôo por não tê-lo lido antes. Embora lançado em 1997, só agora, numa pausa de fim-de-semana na praia, fui ter contato com o excelente livro de Hermínio Miranda Guerrilheiros da Intolerância, resultado de uma pesquisa daquele extraordinário companheiro espírita, a partir da qual deduziu que três personagens históricas de ímpar importância na luta contra o autoritarismo cristão são, na verdade, um único espírito: a filósofa Hipácia, que viveu em Alexandria, no século V de nossa era, e que morreu esquartejada por ardorosos cristãos, fiéis ovelhas Bispo Cirilo (São Cirilo!), que tinha com ela velha rixa; o monge Giordano Bruno que, no século XVI, defendeu coisas tais como a pluralidade de mundos habitados, a reencarnação, etc. e que foi queimado vivo pela Inquisição, em Roma, em 17 de fevereiro de 1.600; e a mística inglesa Annie Bessant, líder mundial da Sociedade Teosófica, que, entre os séculos XIX e XX, perseguiu um projeto audacioso de campatibilização entre as tradições religiosas cristãs do ocidente com as antigas doutrinas orientais, mas que encontrou pela frente muita intolerância e inúmeras artimanhas, no próprio seio do movimento que presidiu, frustrando seus sonhos e vendo desmantelar-se os projetos teosóficos.

A Muralha

No relato fascinante que Hermínio Miranda faz dessas três biografias, há algumas inserções estabelecendo paralelos com as dificuldades enfrentadas pela proposta espírita, de Kardec ao nosso tempo, diante da intolerância religiosa. Destaco a observação segundo a qual, Kardec, quando organizou metodicamente os ensinos espíritas, “ainda nutria a esperança de que os princípios básicos da doutrina dos espíritos contribuíssem para restaurar as esclerosadas estruturas do pensamento religioso contemporâneo”. Entretanto, o dogmatismo cristão, segundo o autor, funcionou, da mesma forma como aconteceu com Hipácia, Bruno e Bessant, como uma verdadeira “muralha” contra a qual, historicamente, se têm chocado todas as idéias progressistas que se proponham a debelar o dogmatismo cristão.

Já defendi idéia semelhante, aqui. Acho que Kardec, a se julgar por algumas expressões do tipo “espiritismo cristão” por ele utilizadas, ainda imaginava que seria possível modernizar, humanizar e universalizar o cristianismo. Mas, ao curso do século XX, a expressão “cristianismo” assumiu uma conotação que não pode mais se dissociar dos dogmas que o sustentam, que são a própria garantia de seu poder, de sua identidade, social e institucional e que guardam total incompatibilidade com as propostas renovadoras espíritas. Nesse contexto, é, hoje, absolutamente incongruente alguém declarar-se “cristão” e “espírita”.

Cristianismo e Jesus

Nunca é demais repetir que, neste raciocínio, é fundamental distinguirmos com clareza que o cristianismo é uma coisa e o ensino moral de Jesus é outra. Se no tempo de Kardec ainda era possível sonhar com o restabelecimento da coincidência entre uma e outra proposta, hoje, com a clara definição de cristianismo assumida pelo movimento ecumênico cristão, o divórcio restou cabalmente decretado: cristão não é quem adota os ensinos morais de Jesus; cristão é quem, batizado, professa a fé de que Jesus é a terceira pessoa da trindade divina e único Senhor e Salvador. Esse é o laço que une os cristãos das diversas denominações dentre as quais, evidentemente, não está o espiritismo.

Também aqui, Hermínio de Miranda nos conduz a um conceito preciso quando, em seu livro, lamenta o fato de Annie Besant, que fora contemporânea de Kardec, não ter se interessado pelas idéias espíritas. Uma hipótese que levanta é a de sua alma reencarnada guardar as cicatrizes do esquartejamento e as marcas das queimaduras que lhe foram impostas em nome de Jesus, não se dando conta de que “o Prof. Rivail também rejeitava o cristianismo vigente (...) para garimpar nas suas origens, apenas a ética, os ensinamentos incontaminados de Jesus”.

Giordano Bruno

No dia17 de fevereiro deste ano completaram-se exatamente 400 anos da execução de Giordano Bruno, queimado vivo em Roma, frente a uma multidão enorme de cristãos que celebravam o jubileu do Papa Clemente VIII. Havia uma expectativa de que o atual Pontífice máximo da Igreja, a exemplo do que já fizera com Galileu Galilei, expressasse um pedido de perdão a Bruno, mártir-símbolo da intolerância cristã do fim do século XVI. Nem uma palavra a esse respeito saiu do Vaticano. A igreja custa muito a dar o braço a torcer. Levou 400 anos para pedir perdão a quem afirmou que a Terra girava em torno do Sol. E, certamente, levará mais 400 para reconhecer que não estamos sós no Universo e que há uma lei evolutiva que Giordano Bruno denominou transcorporação e que, modernamente, se chama reencarnação.

O conservadorismo religioso continua sendo o maior óbice ao progresso das idéias.

Milton R. Medran Moreira é advogado, jornalista e vice-presidente da CEPA.

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