Artigo de Milton Medran Moreira - Janeiro/Fevereiro de 2000

Opinião em Tópicos

Da Justiça

Na época, eu ainda não era espírita. Promotor de Justiça, coube-me assumir o cargo em uma cidade do interior. Dentre minhas atribuições, estava a atuação junto ao Tribunal do Júri. Logo que assumi, o escrivão veio falar comigo: “Doutor - disse-me ele - quero lhe dar uma mão. Tenho aqui a lista geral dos jurados da cidade. Assinalei para o senhor alguns nomes que, quando sorteados, conviria ao senhor recusar. Eles são espíritas. Absolvem sempre os réus”. Agradeci a mãozinha do serventuário e fiquei pensando comigo: será que espírita é contra a justiça? Depois, quando comecei a me interessar pela literatura espírita disponível, encontrei algumas publicações que justificavam essa estranha postura dos espíritas daquela cidade: há, realmente, quem pense, no nosso meio, que a lei de causa e efeito é constituída de mecanismos tão independentes do homem, que nossa ação em prol da melhoria das instituições é absolutamente desnecessária e inútil. Tudo está determinado por equações matemáticas tão precisas que dispensam nossa intervenção. A distribuição da justiça, assim, seria uma tarefa sagrada, pairando acima de nossa competência.

Co-gestão

Não dá para entender os finos mecanismos da justiça cósmica aplicada ao ser inteligente, sem colocar o próprio ser inteligente como agente individual e coletivo da consecução da justiça. Quando os espíritos responderam a Kardec que um dos objetivos da encarnação, além de promover o seu próprio aperfeiçoamento, era propiciar ao espírito “fazer a sua parte na obra da criação” (L.E.q.132), dimensionaram corretamente a responsabilidade que todos temos no amplo processo criativo de um mundo melhor, mais solidário, mais fraterno e, também, mais justo. Os mecanismos humanos que visam estruturas sociais mais justas, que promovem a dignidade do homem, preservando seus direitos e punindo seu comportamento anti-social, na defesa maior dos organismos sociais, são a própria expressão da justiça divina, em regime de co-gestão com a criatura.

Não julgueis

O “não julgueis” de Jesus de Nazaré, às vezes invocado como justificativa da não intervenção do homem nos mecanismos de justiça, absolutamente, não tem o alcance que muitos lhe querem dar. Kardec analisa corretamente a matéria, quando se ocupa disso em O Evangelho Segundo o Espiritismo: a advertência condena a maledicência e a maldade, mas não a repressão ao mal, que, muitas vezes, é uma obrigação do homem. Levada às últimas conseqüências, a máxima evangélica estaria condenando a existência do próprio Estado que, para existir, precisa se valer de mecanismos de defesa social garantidores da ordem e da paz. E estaria abonando a impunidade, um dos males que todos desejamos ver banido.

A coragem de condenar

Falei disso tudo para dizer que estou contemplando com muito otimismo o momento que vivemos no Brasil. Cada vez que vejo cassado um deputado que estava envolvido com o narcotráfico, preso um desembargador que vendia decisões, ou um delegado de polícia sair algemado após depor perante uma CPI, convenço-me que estamos no limiar de um tempo novo. Não que me alegre com o sofrimento deles. Nunca tive raiva e tampouco desprezo pelo criminoso. Tenho, sim, muita pena dele. Alegra-me ver que a sociedade está se depurando. Não caio nessa de afirmar que estamos vivendo, hoje, os mais agudos tempos de corrupção e de criminalidade. A corrupção e o crime sempre existiram. Formas monstruosas de criminalidade, principalmente de parte daqueles que detinham o poder e o arbítrio, eram, ontem, incensadas como atos de glória e de heroísmo. Pouco a pouco, vamos institucionalizando a honradez e a decência. Vamos vencendo a dura luta contra a impunidade. Muitas vezes, o ato de condenar é um ato de suprema coragem e de grandeza moral, ao contrário do que pensavam alguns jurados da comarca onde atuei.

Milton R. Medran Moreira é advogado, jornalista e vice-presidente da CEPA.

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