Artigo de Milton Medran Moreira - Agosto de 2000

Opinião em Tópicos

A Camisinha

O mais recente conflito interno da Igreja tem como pivô nada mais nada menos que a popular e cada vez mais prestigiada camisinha. Tudo começou quando a Pastoral da Saúde da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil emitiu um documento favorável ao uso do preservativo, como forma de combate à AIDS. A Santa Sé não gostou, e seu representante no Brasil apressou-se em recomendar a todos os padres e bispos que se omitissem de qualquer ação em favor do uso da camisinha que, segundo o entendimento da Igreja, além de não dar plena segurança, favoreceria "uma vida sexual desordenada".

Diante da reação do Vaticano, a CNBB tratou logo de desautorizar o pronunciamento da Pastoral da Saúde, assumindo a posição oficial de total oposição ao uso da camisinha.

O Padre da Camisinha

Parecia estar todo o mundo de acordo, como nos velhos tempos do "Roma locuta, causa finita", quando o Padre italiano Valeriano Paitoni, pároco de uma igreja em São Paulo, deu bombástica entrevista posicionando-se contra a posição da Igreja. Paitoni realiza intensa ação social entre pessoas portadoras do vírus HIV e, além de ser francamente favor às campanhas de adoção do preservativo, ele próprio o distribui entre doentes e pobres de seu bairro.

O conflito está estabelecido: de um lado o padre (e com ele alguns sacerdotes progressistas e muitíssimos católicos) e, de outro, o milenar magistério da Igreja, segundo o qual o sexo só é licito quando praticado entre cônjuges, em caráter exclusivo, o que, por si só, garantiria a não propagação da AIDS. Historicamente, aliás, para a Igreja a função do sexo é a geração de filhos, e no regime exclusivo do matrimônio (religioso, diga-se de passagem). Afora isso, o sexo, base teológica da culpa original, é o mais feio dos pecados.

Dogma x Vida

Estamos, aí, diante do mais novo conflito entre o dogma e a vida. Defender que o sexo é apenas um instrumento reprodutivo é desconhecer palpitantes aspectos do psiquismo humano tão fortemente influenciado pela libido, como o comprovou Freud. Relegar a energia sexual, que tem caráter natural e que não flui só entre pessoas civil e religiosamente casadas, a um impulso desprezível e pecaminoso, é fechar os olhos para os benefícios psicológicos e espirituais que a troca de energias entre pessoas que se amam pode produzir, desde que isso ocorra sob critérios de responsabilidade e respeito.

E, no caso em foco, deixar de cooperar e até posicionar-se contra a meritória campanha de combate à AIDS pelo único meio que até hoje se mostrou eficaz, em nome de um vago princípio religioso, manifestamente não aceito pela maioria dos próprios católicos, é atitude de verdadeiro obscurantismo.

Onde está Deus?

Por certo, a Igreja continua vendo Deus em dogmas que o tempo derruiu..

Já o padre paulista está vendo Deus no aidético, no pobre, no desajustado sexual, ou no infeliz que, por descuido ou ignorância, se infectou. Vê também a presença de Deus numa campanha a favor da vida. Seja de quem for essa vida. Do casado ou do solteiro. Do hétero ou do homossexual. E, é claro, identifica também a amorável presença de Deus no instinto sexual humano, muito embora devassos o tenham banalizado tanto e certos religiosos o tenham depreciado a ponto de identificarem nele não a sublime energia da vida, mas a hedionda expressão do pecado.

Nem sempre Deus está com a religião. Mas, sempre está com o homem.

 

Milton R. Medran Moreira é advogado, jornalista e vice-presidente da CEPA.

E-mail: medran@pro.via-rs.com.br