Artigo de Eugênio Lara - Abril de 2000

Nova Cruzada

Como o movimento espírita é frágil em relação ao questionamento de seus próprios fundamentos! Bastou ventilar a idéia de que é necessário atualizar e contextualizar o pensamento kardequiano, e o que vemos é o surgimento de uma nova cruzada, institucionalizada em deliberações de federativas em nível nacional como a FEB e estadual, como a gaúcha e a catarinense.

O mecanismo é eficiente. Os porta-vozes do Espiritismo ‘‘mainstream” saem por aí espalhando a equivocada idéia de que a obra de Kardec será adulterada, de que ela sofrerá uma espécie de up-grade, uma nova versão, comprometendo assim, definitivamente, a obra do “plano espiritual superior”. Disseminam o surrado realejo de que se quer tirar Jesus do Espiritismo e transformá-lo numa academia de notáveis ou, o que é pior, vivenciá-lo sem a participação dos Espíritos. Um Espiritismo sem Espíritos, enxergam esses “intelectuais”, espécie de vestais protetoras de uma pureza que não existe e nunca existiu. Escrevem livros, artigos, fazem palestras, motivados por essa bandeira.

Certa vez, ao ouvir um expositor afirmar que existe uma corrente que deseja um Espiritismo sem Espíritos, perguntei-lhe muito curioso que corrente é esta, onde se localiza e quais seus objetivos. Realmente, gostaria muito de conhecer as pessoas desse grupo, que imaginam ser possível praticar um Espiritismo sem a participação dos Espíritos. Ora, mesmo que não se queira eles sempre participam. E o orador desconversou, tergiversou e saiu pela tangente, pois ele mesmo sabia que o seu discurso era ideológico, até a medula.

Essas calúnias ideológicas acabam tendo uma espécie de efeito cascasta, ou seja, ao se divulgar a errônea e capciosa idéia de que querem tirar Jesus do Espiritismo, de que o evangelho será desprezado e que a obra de Kardec será modificada, muitas pessoas se assustam e discriminam toda e qualquer idéia oriunda de grupos espíritas vítimas desse tipo de pecha. Não li e não gostei, eis o resultado, pouco crítico, bem alienante.

Oradores fiéis ao movimento de unificação religiosista saem a campo divulgando essa falsa idéia de que Kardec será adulterado. Mas esses mesmos senhores que hoje põem a boca no trombone, a fim de preservar seus interesses ideológicos, silenciaram no início dos anos 70, quando a Federação Espírita do Estado de São Paulo (Feesp) pôs nas bancas e livrarias uma tradução traidora de O Evangelho Segundo o Espiritismo, feita por Paulo Alves de Godoy, ainda encarnado. O único que realmente teve coragem de enfrentar os tubarões do Espiritismo evangélico foi o saudoso filósofo e pensador espírita J. Herculano Pires, que pagou um preço caro, pois foi mais ainda marginalizado por muitos senhores que hoje o idolatram.

Xenofobia

Essa nova atitude xenófoba do movimento unificacionista é compreensível mas não se justifica.

Compreensível pelas características de qualquer subsistema social e razoavelmente estruturado como o movimento espírita. A tendência é descartar qualquer idéia, pessoa ou grupo que não atenda aos seus interesses. As pessoas que tomam parte nesse esquema se imaginam iguais, com a crença nas mesmas idéias, gostam das mesmas coisas e não toleram a divergência, não suportam a polêmica, desprezam e combatem idéias aparentemente contrárias ao seu sistema de crenças. Os sistemas religiosos são assim. Se surge alguém diferente é logo escrachado, marginalizado, apontado como obsidiado, a fim de se evitar o aparente caos no esquema predominante.

Trata-se de uma espécie de instinto de conservação em nível institucional. O Espiritismo no Brasil, institucionalizado do jeito que está, possui seus esquemas de autodefesa, seus seguranças e pitbulls encarregados de impedir a invasão de seus domínios ideológicos. Nada mais natural. Foi sempre assim desde que apareceu por aqui, no século passado. Nem bem começou a se desenvolver e já surgiram duas correntes antagônicas e incompatíveis mesmo, os místicos, liderados por Bezerra de Menezes e os cientíticos, tendo à frente Angeli Torterolli, uma das figuras mais expressivas e desconhecidas do movimento espírita brasileiro.

O Espiritismo no Brasil já surgiu divergente e bem diferente do movimento espírita francês. Quando Kardec menciona na Revista Espírita a publicação do periódico O Eco d´Além Túmulo, a primeira publicação espírita no Brasil, fundado e dirigido por Olympio Teles de Menezes, ele nem imaginava que, apesar do espírito anticlerical do periódico, Teles era o que se poderia chamar de espiritólico, pois conciliava os princípios espíritas com algumas crenças católicas como o dogma da ressurreição. Bezerra de Menezes era mariólatra e nunca abandonou sua simpatia pelo catolicismo, bem como seus confrades também roustainguistas, todos do círculo da Federação Espírita Brasileira.

Sincretismo

A natureza antropofágica e analógica de nossa cultura acabou resultando numa espécie de sincretismo sem nenhum  pudor. Concilia-se Espiritismo com crenças afro-brasileiras, com o esoterismo, o cristianismo, a cultura popular, tudo isso tendo como pano de fundo a indigência cultural e a desinformação, não somente da população como também da elite dirigente. Até hoje há intelectuais, pensadores e jornalistas de renome que não sabem a diferença entre Kardecismo e Umbanda. Os verbetes, em dicionários e publicações brasileiras, quase sempre pecam pela ignorância, pela deturpação do que seja realmente o Espiritismo e o papel de Allan Kardec no processo de elaboração da Doutrina. Se nem os espíritas se entendem nesse aspecto que dirá leigos e neófitos em matéria de Espiritismo? (*)

Não é de admirar, portanto, que a reação do movimento espírita institucionalizado à tese da releitura e atualização do Espiritismo seja tão truculenta assim. Até a FEB, que costuma silenciar do alto de sua prepotência, veio a campo por meio de seu mensário oficial Reformador, e através da manifestação de lideranças sabujas e fiéis aos seus princípios.

A Internet tem sido usada também como arma para prevenir os espíritas dos perigos que podem advir de uma suposta atualização doutrinária.Até mesmo movimentos de pose progressista mas de alma conservadora como o movimento da Reforma, oriundo da região de São José do Rio Preto-SP, ficam tirando a sua casquinha nessa polêmica da atualização.

Em quase todas as edições de seu periódico, A Voz do Espírito, há sempre uma crítica repleta de argumentos repetitivos aos chamados “laicos” ou “não-religiosos”, mesmo que de “en passant”, com aparência de palavra final e definitiva a respeito do tema. Muito possivelmente por absoluta falta de assunto, já que estes senhores da tal da Reforma ainda não mostraram a que vieram. Seus argumentos carecem de substância, e as idéias demonstram a mesmice de sempre. Um movimento com um nome desses nunca terá um espírito transformador. Ao invés de somar divide, pois é preciso entender que tanto os “reformadores” como os “não religiosos” possuem um inimigo comum: o roustainguismo e a igrejificação do Espiritismo. Pra quê então ficar se degladiando? Teríamos que fazer uma edição extra todo mês somente para rebater as críticas pessoais e levianas que nos são feitas. O tempo dirá quem está com a razão, assim nos ensinou Allan Kardec.

Transformar — O importante é trabalhar, produzir, realizar eventos, elaborar uma cultura espírita da melhor qualidade, incentivar a criação de grupos de estudos, a mudança radical ou gradual de centros espíritas em centros de cultura espírita, TRANSFORMAR o dia-a-dia do movimento espírita, ao menos do segmento que está interessado em pensar, em produzir conhecimento sem as amarras do religiosismo.

Deixa a FEB, USE, Reforma, Herculanismo e tantos outros ismos pra lá. Essa gente quer ser ouvida mas se recusa a compartilhar, pois se imaginam detentores da verdade, esperando que um dia, se Deus quiser, os gentios abram seu coração e se convertam. Com essa gente não tem papo pois são intolerantes. O tempo demonstrou que estes senhores não estão tão preocupados assim com o Espiritismo. Em primeiro lugar vem o evangelho, o Cristo, o poder, a caridade, o anjo Ismael, o “plano espiritual superior”, depois, mas bem depois mesmo eles pensam no futuro do Espiritismo.

Com todo o devido respeito aos que participam com sinceridade do movimento espírita institucionalizado, mas trata-se de uma estrutura perniciosa e prejudicial ao verdadeiro entendimento da filosofia espírita.

Muitos se asssustam com o poderio das federativas, com toda a infra-estrutura voltada para a preservação de uma idéia espírita decrépita e ultrapassada. Isso me lembra um slogan nos anos 60, da distribuidora de combustível Atlantic: “quem não é o maior tem que ser o melhor”. Toda aquela estrutura montada lá no Planalto Central, os amplos esquemas de divulgação e comunicação de parte do movimento espírita, à primeira vista pode causar um certo espanto e um momentâneo complexo de inferioridade. Ledo engano! O que importa é a idéia. E a idéia é o melhor que possamos ter.

Entre o poder e a idéia, é preferível a idéia penetrante, insinuante, crítica e libertadora.

(*) Segundo estes senhores Allan Kardec foi apenas o “codificador”, ignorando seu cabedal intelectual, sua capacidade como pedagogo e pensador, como cientista e pesquisador. Um trabalho de gênio reduzido a um simples empreendimento de um estafeta. Fundador é mais apropriado e muito mais condizente com o seu papel ativo na estruturação do Espiritismo. Assim fora conhecido em seu tempo e o grande astrônomo e pensador espírita Camille Flammarion confirmou isso no discurso que fez no funeral do Bom Senso Encarnado, ao chamar-lhe de fundador do Espiritismo. O Druida de Lyon exerceu trabalho notável de codificação de idéias, informações e signos, mas ele é, sobretudo, o fundador do Espiritismo.