Artigo de Jaci Régis - Dezembro de 2000
Após a palestra, durante
o tempo destinado às perguntas, o homem maduro sentado na
primeira fila levantou o dedo. Pedi que falasse.
Posso fazer uma pergunta de ordem pessoal?
Se o senhor quiser se expor....
Era um homem de cabelos brancos, já rareando no crânio
alongado. Um rosto arredondado, mostrando certo vigor.
Seus olhos, porém, pareciam apagados ou, quem sabe, mostrando a
dúvida que lhe invadia a alma e que em breve colocaria para
todos.
Depois de 49 anos e seis meses de casamento, prosseguiu,
minha esposa morreu há sete meses.
Fez uma pausa e sua voz era baixa, mas todos pareciam
interessados no que dizia, pois mesmo os mais distantes ouviram.
É que não consigo deixar de pensar nela... Parou,
olhou-me com um ar de culpa e receio e continuou: será
que a estou prejudicando pensando tanto nela?
Eu respondi: pensar nela é bom, não deixe de fazê-lo...
apenas envie-lhe um pensamento de ternura e carinho. Isso lhe
fará muito bem. Não tente, porém, tentar materializa-la e
fazê-la reviver. Isso não acontecerá....
Ele levantou o dedo polegar e apenas sorriu.
Como poderia ele deixar de lembrar? Quando alguém que conviveu
tantos anos parte, seu lugar fica vazio, mas sua presença parece
permanecer até se diluir na agitação da vida. O homem, na
solidão da partida, tende a olhar em torno e ver o vulto dela
passar na sombra do anoitecer e ouve ainda sua voz, o ruído de
seus passos, suas reclamações, manias, alegrias e tristeza.
Todavia, passada essa nuvem ilusória, tudo é silêncio...
Sem lembranças perderíamos os laços que nos unem a quem esteve
em nosso destino e que permanece no interior de nós mesmos, como
símbolos de momentos, como participantes de nossos caminhos e
como amor que nos tornou humanos.
A prodigiosa engenharia da mente humana permite que em cada um,
transitem imagens, recordações, sonhos que tomam formas e
expressões que animam e dão vida aos desejos e lembranças.
Há quem lembre para não esquecer. Teme, culpa-se, quando
percebe desaparecer como nuvem que corre no céu tocada pelo
vento, as imagens dos que tem que amar. Talvez isso leve tantas
pessoas a fixar-se em alguém que partiu, abandonou e tomou novos
rumos.
Como também existe quem procure esquecer para não lembrar.
Procura esconder em algum lugar de si mesmo imagens, momentos e
pessoas que marcaram sua vida de forma amarga, triste ou que
tenha produzido uma mágoa muito grande.
Todavia, quando os laços que nos prendem a alguém que foi-se de
nós, seja nas penumbras da morte ou nos processos da vida, são
de bem-querer, a lembrança flui sutil, natural, emerge da alma
como um perfume agradável.
A imagem delineada na memória traz saudade. A saudade é
envolvimento sensível do Espírito em emoções que não apenas
lembram mas vivem em cada um, a presença do ausente no âmago do
ser.
Diante do túmulo, existem mais incertezas do que certezas. O
momento da morte é solene, dificil. Para quem vai e para quem
fica.
A sepultura é uma barreira, um silêncio doloroso, uma
incógnita infinita.
Nos muitos equívocos traçados ao longo do caminho, afirmou-se
que deveríamos esquecer quem partiu ou por ele orar como morto
no trânsito entre o céu e o inferno, para rogar a Deus que
evite seja jogado no fogo do remorso ou da culpa.
Ou então, nos diziam que embora existindo além da sepultura,
quem morre voa como passarinho em busca de paisagens celestes e
nem se importa com quem fica na superfície do planeta azul, de
provas e expiações.
Ou, ainda mais cruel, como pregam as religiões, dizendo que quem
penetra no céu esquece quem ficou no inferno, dourando pílula
do egoísmo ou justificando a secura do coração, o apagar do
amor e da saudade.
O que sustenta a vida num universo que nos parece assustador e
impessoal, é justamente o afeto, essa misteriosa força que nos
arrasta uns para os outros, que nos faz perdermo-nos nos abismo e
nos faz erguer às alturas.
Ah! Esse trânsito de ida e vinda, porque como diz a canção, a
mesma estação é para quem chega e para quem parte. Ah! essa
busca de amor, essas lembranças, esse pedidos perdidos no ar:
não me esqueças .... não partas...
No silêncio de muitos Espíritos vivem lembranças de amores
não vividos, de esperanças não realizadas, mas também sonhos
realizados, faces queridas a se multiplicarem no rodopiar
incessante das voltas que a vida dá.
A solidão dói como espinho de insatisfação, penetrando as
carnes da alma. As mãos murcham, os olhos morrem, o coração
descompassa porque o cheiro do outro, a vibração do outro, até
o problema do outro, são necessários para dar sentido à marcha
sem sentido que cada um segue para um destino desconhecido.
A Doutrina afirma que viveremos sempre, que o amor não se perde,
nem a esperança. As lembranças podem ser ácido sobre o
coração ou aragem suave e perfumada numa tarde de verão...
pêndulo da vida.