Artigo de Eugênio Lara - Setembro de 2000

Kardecista ou Espírita ?

kardecismo sm (Kardec, np+ ismo) Doutrina espírita do pensador francês Allan Kardec (1804-1869).

- (Dicionário Aurélio Eletrônico)

kardecismo sm (Kardec, np+ ismo)

Doutrina religiosa de Allan Kardec (1804-1869), pensador espírita francês.

- (Dicionário Michaelis Eletrônico)

kardecista adj.

1. Pertencente ou relativo a Allan Kardec, ou ao kardecismo.

2. Que é adepto do kardecismo.

3. Adepto dessa doutrina.

- (Dicionário Aurélio Eletrônico)

kardecista - Segundo o pensador espírita argentino Humberto Mariotti é o praticante da filosofia espírita. É aquele que concretiza a idéia espírita numa práxis, concretizando-a no social.

kardecismo - É a objetivação da idéia espírita. O Espiritismo se objetivou graças à ação prática de Kardec, ao seu método científico e pedagógico. Trata-se de um método, racional, visando estabelecer "a realidade do Espiritismo Espírita e positivo". Definição de Humberto Mariotti in Parapsicologia e Materialismo Histórico, I parte, cap. VI - [1963] - Edicel © 1983 - São Paulo.

O uso de adjetivos para se estabelecer uma distinção ideológica no meio espírita vem desde sua origem. Sabe-se, pela leitura da Revista Espírita e de fontes históricas acerca dos primórdios do Espiritismo na Europa, que já no tempo de Kardec a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) transformou-se num poço de intrigas, fato que deve ter muito contribuído para o agravamento do estado de saúde do Mestre de Lyon. Em função disso, não pôde se afastar da presidência da SPEE, como era seu desejo, a fim de se dedicar mais inteiramente ao desenvolvimento do corpo teórico-prático do Espiritismo.

Século passado, no Brasil, a partir de 1860, começaram a surgir correntes, os científicos, os místicos, os kardecistas. De lá para cá muitas adejtivações se cristalizaram, como a de espírita cristão, adepto do Espiritismo Cristão, lançado pelo advogado de Bordeux e ex-discípulo de Kardec, Jean Baptiste Roustaing, na obra Os Quatro Evangelhos, editado pela FEB.

Ao mesmo tempo em que cumpre um papel didático, a adjetivação enfraquece a idéia, que se dilui, se fragmenta em miríades de correntes e facções. Pode-se dizer que o movimento espírita hoje é uma frente ampla de correntes espiritualistas conhecida como Espiritismo. Pois a distinção entre movimento espírita e Espiritismo é meramente teórica, irreal até, pois na prática, a forma como foi construído o pensar ou o não-pensar espírita, os fatos históricos, estão aí como objeto de nossas reflexões, inclusive de acadêmicos que não atuam nas fileiras espíritas.

Espírita evangélico, roustainguista, chiquista, andreluizista, laico, religioso, kardecista, divinista, ramatista, cristão, livre-pensador etc. são o que poderíamos chamar de um mal necessário. Ruim com eles, os rótulos, pior sem eles. Quem se orienta por uma visão livre, aberta e não-religiosa do Espiritismo, evitará ser confundido com adeptos que rimam amor com dor, luz com Jesus em suas orações diárias.

Vivemos num planeta onde o fluxo de informações é gigantesco. Conversamos on-line de qualquer parte do globo. Uma grande aldeia global, na previsão de MacLuhan, transformou-se o nosso planeta. Isso significa que a pluralidade das idéias é um fato inevitável, tornando-se um fato consumado, uma regra a ser respeitada no processo de comunicação. Os espíritas, sejam eles quais forem, precisam, como qualquer outro cidadão da Terra, respeitar as divergências e diferenças.

O Espiritismo, pela sua natureza universalista, nos conduz ao exercício da tolerância, essa bela virtude inimiga do sectarismo político e religioso, dos preconceitos sexuais, de casta e de cor. Essa uma de suas maiores contribuições ao nivelar em um mesmo plano de igualdade existencial, os cidadãos da Terra, que o são também do Universo, nossa cidade, a nossa morada. O Espiritismo amplia aquele antigo conceito grego do habitante da pólis, o político, o ser político, o cidadão. O Universo é a nossa pólis.

Mas a busca da identidade é uma necessidade humana, que se expressa também nas relaçõaes inter-pessoais. Nada mais justo do que se identificar, sem confusões semânticas. Ao sermos indagados por alguém acerca de nossa filosofia de vida ou religião, basta responder espírita kardecista, ou simplesmente kardecista. Dando, é claro, as devidas explicações para quem possivelmente não saiba nem a diferença entre Espiritismo e cultos afro-brasileiros, e que imagina a doutrina de Kardec como uma religião.

Essa adejtivação revaloriza o fundador do Espiritismo, Allan Kardec. Mas não o coloca acima do Espiritismo. Ele foi o grande iniciador, o primeiro mestre e a continuidade de seu trabalho depende daqueles dois fatores que ele mesmo estabeleceu: o desenvolvimento teórico do Espiritismo e os meios mais eficazes para a sua divulgação, sempre antenado com o progresso científico, com o avanço das idéias e de novas tecnologias.

Já a conceituação de Mariotti é de caráter filosófico. Ele dá um outro significado à palavra kardecismo, que se torna sinônimo de práxis, práxis filosófica, práxis kardecista. O escritor Canuto Abreu, um dos espíritas mais eruditos que o Brasil conheceu, considerava o kardecismo (ele grafa Cardecismo) como o resultado da ação intelectual de Kardec, ao analisar os evangelhos sob a ótica espírita. Segundo ele, o kardecismo surge concretamente a partir de O Evangelho Segundo o Espiritismo, onde ao lado do Espiritismo, o pensamento dos Espíritos contido em O Livro dos Espíritos, aparece o kardecismo. E aí vemos a marca do organizador, do pensador, do comunicólogo, do cientista, do pedagogo.

Posteriormente, em 1957, 21 anos depois, por ocasião das comemorações do centenário de lançamento da 1ª edição de O Livro dos Espíritos, Canuto Abreu traduz e o lança em forma bilingüe. Na introdução, ele amplia o conceito de kardecismo e considera a ação direta e definidora de Allan Kardec a partir da reestruturação de O Livro dos Espíritos, em sua segunda edição. O próprio fundador da Doutrina considerava essa segunda edição uma nova obra, refundida e ampliada, como ele próprio afirma na última página da primeira edição.

Portanto, se autodenominar de kardecista ou espírita kardecista — ainda que com um significado mais amplo do que os já citados — não é nenhuma heresia. A exemplo, o kardecismo se diferencia do marxismo porque essa doutrina foi Marx (com o auxílio material e intelectual de Engels) quem criou sozinho, enquanto que Kardec recebeu a colaboração de médiuns e Espíritos, um radical contraponto na diferenciação epistemológica entre ambas as doutrinas.

Espírita kardecista é uma redundância. Todo Espiritismo deveria ser kardecista, mas já que não é assim, o rótulo se legitima, pois há espíritas que não são kardecistas. Há quem se diz espírita e nunca leu obra alguma de Allan Kardec. É um crente. E o Espiritismo, ao contrário do que pensa e sente a grande maioria dos espíritas, não é uma doutrina de crentes. É uma doutrina de livres-pensadores e humanistas, cuja significação precisa se acha muito bem colocada nas expressões kardecismo e kardecista.