Artigo de Saulo de Meira Albach - Dezembro de 2000
"Ninguém vive sem
os Espíritos. Não existem dois mundos: o material e o
espiritual. Há apenas um. Nele a vida se entrelaça e se
mistura. Quando alguém se refere à vida espiritual, o mundo dos
Espíritos surge apenas como elemento didático, visando
facilitar a compreensão. O mundo, na verdade, é um só.
(Wilson Garcia - Nosso Centro - Casa de Serviços e Cultura
Espírita, co-edição Eldorado/USE, São Paulo-SP, 1999)
Circulam, volta e meia, artigos na imprensa espírita criticando
grupos (não identificados) que estariam propondo um Espiritismo
sem os Espíritos. A crítica, quase sempre
mal-intencionada, dá a entender que os grupos ditos mais
intelectualizados desprezam o intercâmbio com as inteligências
humanas que estão no plano extrafísico.
Particularmente não conheço nenhum destes grupos. Seria bom que
tais críticos os identificassem para que pudéssemos saber o
porquê de uma tal postura. Afinal de contas, o Espiritismo foi
fundado com base neste intercâmbio e Kardec chega até a
defini-lo como a ciência que trata, entre outras coisas, da
relação entre os Espíritos e os encarnados (in O Que é o
Espiritismo, introdução).
Uma questão, contudo, precisa ser colocada. Há grupos
espíritas que não dispõem do concurso de um médium e, por
isso optam pelo estudo como forma de atividade principal. Será
que tais grupos perderiam o caráter espírita pelo fato de não
realizarem atividades mediúnicas?
Minha resposta a esta questão foi buscada junto ao fundador do
Espiritismo. Em Viagem Espírita em 1862, Allan Kardec faz
interessante comentário sobre grupos novos que surgiam na
França:
Há algum tempo constituíram-se alguns grupos, de especial
caráter, e cuja multiplicação entusiasticamente desejamos
encorajar. São os denominados grupos de ensino. Neles ocupam-se
pouco ou nada das manifestações. Toda a atenção se volta para
a leitura e explicação do Livro dos Espíritos, do
Livro dos Médiuns e de artigos da Revista
Espírita. Algumas pessoas devotadas reunem com esse
objetivo um certo número de ouvintes, suprindo para eles as
dificuldades da leitura ou do estudo isolado. Aplaudimos de todo
o coração essa iniciativa que, esperamos, terá imitadores e
não poderá, em se desenvolvendo, deixar de produzir os melhores
resultados. (pág. 126, Casa Editora O Clarim, Matão,
1968, 1ª edição em língua portuguesa, trad. Wallace Leal
Rodrigues).
Observe-se que Kardec fala em encorajar entusiasticamente a
multiplicação dos grupos de ensino. Portanto, mesmo sem
manifestações mediúnicas, pode-se constituir um grupo
espírita. É claro que, com objetivos sérios, com reuniões
elevadas e desprovidas de frivolidades, bons Espíritos estarão
assistindo tais grupos. Afinal de contas, todos sabemos que o
intercâmbio entre encarnados e desencarnados não passa
necessariamente pela comunicação mediúnica ostensiva. Há
formas sutis e nem por isso menos eficazes de se estar em
intercâmbio com os amigos do mundo espírita.
Ainda em Kardec O Livro dos Médiuns obra publicada
em 1861, com segunda edição (revista) em 1862, o mestre lionês
observa:
Os médiuns são certamente elementos essenciais das
reuniões espíritas, mas não são propriamente indispensáveis
e seria errôneo supor que na sua falta nada se tenha a fazer.
Nã há dúvida que numa reunião com o fim de fazer
experimentações não podem faltar os médiuns, como não
poderiam faltar músicos num concerto. Mas, quando se visa ao
estudo sério, existem muitos assuntos úteis e proveitosos que
podem ser tratados pelos membros da reunião. Aliás, os grupos
que contam com médiuns podem acidentalmente perdê-los e seria
de lamentar se acreditassem não ter mais o que fazer.
E, continua Kardec, com um comentário que chama a atenção:
Os próprios Espíritos podem, em certos períodos,
deixá-los nessa situação a fim de ensiná-los a passar sem
eles. Diremos mais, que isso é mesmo necessário para o
aproveitamento dos ensinos então recebidos, permitindo ao grupo
dedicar um certo tempo a meditá-los. As sociedades científicas
nem sempre dispõem dos instrumentos necessários de
observação, mas nem por isso se embaraçam e ficam sem ter do
que tratar. Na falta de poetas e de oradores, as sociedades
literárias lêem e comentam as obras de autores antigos e
modernos. As sociedades religiosas promovem meditações sobre as
Escrituras. As sociedades espíritas devem fazer a mesma coisa e
conseguirão grande proveito para o seu adiantamento ao
promoverem conferências em que seja lido e comentado tudo o que
possa ter relação com o Espiritismo, a favor ou contra.
(p. 362, Editora EME, Capivari-SP, 1996, trad. J. Herculano
Pires)
Vê-se o espírito aberto e livre de preconceitos do Codificador.
Muitos dirigentes espíritas que ainda pretendem policiar a mente
de seus freqüentadores, induzindo-os a um tipo de leitura, a um
discurso monocórdico e bitolado, proibindo livros e jornais,
enfim, escolhendo o que é bom para seus associados,
deveriam beber em Kardec a liberdade de pensamento e a
possibilidade de se discutir tudo.
Evidencia-se, pois, que Kardec entendia viável e de grande
utilidade os grupos de estudo do Espiritismo que não usavam em
suas renuiões o intercâmbio direto com os Espíritos.
Nas obras de Kardec, quase todas as coisas estão muito claras.
As confusões decorrem, via de regra, da ignorância das nossas
instituições. Humanas, portanto falíveis. Mas não
imutáveis...