Artigo de José Rodrigues - Santos - Janeiro/Fevereiro de 2000

Espaços para um Tempo Ocioso e Crédulo

Uma sociedade de ócio e outra religiosa. Têm algo a ver, uma com outra? Foi meu questionamento ao passar frente a antigo casarão, onde antes funcionara uma indústria metalúrgica, agora transformado em imenso espaço para o jogo de bingo. Mais adiante, grande prédio já utilizado para casa de comércio, hoje abriga um culto evangélico. Uns falem e outros prosperam. Frutos de um tempo, cada qual tem sua gênese própria, a desafiar teorias, conceitos e finalidades da existência.

A sociedade do ócio, prevista na teoria econômica, tem por base dois fatores: a produtividade da economia, dia-a-dia menos exigente de mão-de-obra direta e física, de um lado. Com isso, o tempo de trabalho formal vai-se reduzindo, fenômeno que também provoca o desemprego. De outro, o aumento da expectativa de vida da população em geral. Esse indicador, que já foi de apenas 43 anos, na década de 50, passou para 68 anos em 1998, no Brasil, segundo o IBGE.

Nesse quadro de organização humana está o Espírito, que adentra o mundo chamado físico sujeito a normas, convenções, políticas econômicas e sociais, sistemas políticos e educacionais. Sob certas condicionantes, o espírito “veste” esses formatos, tendo-os como inarredáveis e neles projeta o seu futuro existencial. Sonha com o dia em que dirigirá integralmente seu tempo, dele fará o que bem quiser, principalmente “nada”, como se este fora um direito adquirido.

O primeiro equívoco de perspectiva histórica para Espírito desse nível está na exigência de crescimento integral, pela sua natureza inteligente, salvo condições patológicas transitórias. Assim, fazer uma projeção de vida socialmente útil com qualquer limite é ledo engano. Ao atingir-se aquele marco, sente-se que o potencial do espírito subsiste com vigor, que o tempo não acabou, que são possíveis novos desafios, a saúde está melhor que o previsto, haja vista a apuração dos institutos de pesquisas, concluindo pelo aumento da longevidade. E o que fazer com o tempo?

Salões de bingo, bem sofisticados, estão preenchendo parte desse ócio. Há toda uma estrutura de serviços para manter a clientela no lugar, até financiadores de dívidas, para os mais incautos, que ali vão deixando a parte legítima que um dia amealharam. É a antítese do que imaginam obter, a vantagem que vai para o outro lado. O tempo consome-se “religiosamente”, as energias escoam por emoções e vagares de números debruçados em cartelas que marcam um destino estreito. A prosperidade desses salões e o seu poder de compra de grandes espaços, dão-nos um termômetro de comportamento.

Na quadra adiante, outro salão imenso apinhava adeptos de culto evangélico. Fora, carros ostentavam adesivos como “Propriedade de Jesus”. Outros qualificavam como “propriedade exclusiva”. A gritaria do templo já havia provocado queixas da vizinhança, que conseguira resultados de alguns decibéis a menos na hora dos testemunhos e das contribuições. Pelas aparências exteriores, a empreitada religiosa estava obtendo sucesso, tanto que, dias depois, liguei o nome do templo ao de uma cadeia de rádio.

Esse gigantismo traz cobiça. Não raro, a imprensa, com certa cautela, publica furtos de arrecadações financeiras, demandas trabalhistas, conflitos de lideranças no campo dos evangélicos, além de uma acirrada disputa com os católicos para ver quem põe mais gente no estádio ou na praça pública. Tudo parece ser um negócio bem rendoso, capaz de financiar campanhas políticas, a ponto de ser criada a “bancada evangélica” na Câmara Federal.

Bem, tudo está dentro da lei do país, mas a quem servem esses senhores? Mudam estruturas, transformam a sociedade, fazendo-a mais crítica sobre as raízes da desigualdade, impulsionando os adeptos para uma busca intelectual e ética? Ou tudo não passa de um jogo de bingo, em que o banqueiro sempre leva vantagem?

Não posso responder individualmente por ninguém, sob grave risco de erro. Mas uma resposta tenho na ponta da língua. Pelo menos, quem está sendo servido na proximidade do templo é o dono de uma área livre. Ele, esperto, colocou no passeio a placa: “Estacionamento – R$ 3,00 por culto”.

José Rodrigues é jornalista, economista e colaborador do Abertura. Foi presidente da Divulgação Cultural Espírita Editora e dirigente do Lar Veneranda.