Artigo de Jaci Régis - Julho de 2000

A Dificuldade de Aceitar o Novo

A ciência conseguiu, neste século 20, proezas antes não sonhadas. Em qualquer aspecto da vida e do conhecimento, as proposições, investigações e pesquisas científicas revisaram os conceitos consagrados nos séculos passados.

Apesar desse avanço científico, queimando etapas e ganhando terreno em tempo cada vez menor, a repercussão social parece longe de abalar os velhos conceitos espiritualistas.

Para a grande maioria das pessoas, as descobertas científicas só têm sentido imediato quando produzem remédios e desenvolvem tecnologias para curar doenças, resolver problemas físicos e mentais.

Por isso, permanece o espiritualismo difuso de nossos dias. Principalmente no âmbito das religiões e crenças, sejam do mundo ocidental como do oriental.

A fé da massa não é abalada por essas descobertas, a não ser a longo prazo, pois a pressão dos fatos modela a cultura, levada a aceitá-los e mudar.

E ainda que a crença em Deus seja obscura e baseada em temor, para a maioria deixar de crer num deus, seja o Alá do Islã ou Jeová dos cristãos e judeus, precipita a pessoa num vazio e num vácuo de insegurança.

No cenário confuso da atualidade, coexistem, paralelamente, com os avanços jamais sonhados da ciência, ledores de mãos, jogadores de búzios, adivinhadores, salvadores carismáticos. As igrejas continuam com seus rituais, pessoas participam de sessões de macumba, vudu, umbanda, quimbanda e outras formas sinergéticas e animastes de crenças, ao lado de aparelhos de ressonância magnética, viagens interplanetárias, teorias sobre o início do Universo e na era da cibernética, da comunicação por satélites, enfim, como diria o humorista, um verdadeiro ”samba do crioulo doido”.

É Preciso Atualizar a Doutrina

Diante dessa realidade insofismável, como o Espiritismo se posiciona? Sua mensagem, sua postura, sua forma de atuar está compatível com as novas perspectivas não apenas científicas, mas humanas do mundo atual ?

Falamos de uma quantidade de exigências morais, de valores que foram deixados de lado, principalmente após a 2ª Guerra Mundial. Seriam esses valores apenas repressores? Todas as doutrina religiosas teriam falhado ?

É preciso atualizar o Espiritismo?

Essa pergunta, óbvia para quem segue o pensamento de Allan Kardec, é rechaçada pelo sistema doutrinário. Por que essa proposta de Kardec permanece no limbo das proibições? Será que o projeto de um Espiritismo dinâmico capaz de evitar o imobilismo, sujeito ao progresso era um sonho irrealizável, uma proposta sem sentido?

Ao dizer que foi Jesus Cristo quem elaborou a Doutrina, com o pseudônimo de Espírito da Verdade, reduzindo o papel de Kardec a um escrevente inteligente, imobilizou-se o pensamento doutrinário, porque, então, como afirmou o Conselho Federativo Nacional, ninguém pode atualizar o que veio do “alto”.

Engessou-se o Espiritismo ficando semelhante aos evangélicos que se fixaram nas letras sagradas da Bíblia e do Novo Testamento e dali não arredam o pé. O que está escrito não pode ser mudado, porque os livros bíblicos foram inspirados por Deus e quem pode desdizer Deus? E a Igreja Católica, que, apesar de encíclicas e perdões históricos, mantém sua doutrina com persistência, para justificar o seu alegado legado de representante de Deus na Terra.

A recusa em aceitar que a Doutrina Espírita é capaz de modificar certos conceitos sem perder sua base, mostra como foi descaracterizada, desviada do sentido que lhe deu seu fundador.

A partir do momento que o Espiritismo foi institucionalizado, começou sua descaracterização, transformado numa seita ligada ao modelo judaico cristão do pecado e do castigo.

A descaracterização básica do Espiritismo iniciou-se bem no começo, pela introdução do roustainguismo. Este está muito mais enraizado do que se supõe, pois até os mais ferrenhos anti-roustanguista, mesmo que não o admitam, foram influenciados pelo apelo cristolatra, base do pensamento de Roustaing, referendado pelo Espírito Emmanuel, um adorador de Jesus Cristo.

Calcado nessa cristolatria, que Allan Kardec jamais admitiu, os egressos do catolicismo encontraram um movimento espírita, de modo geral, tão parecido, em termos, com as características das igrejas, que não precisaram de muito esforço para adaptar-se.

Isso pode ser constatada na prática. Presidentes de Mocidades e Centros Espíritas casam-se no ritual católico, fazem missa de sétimo dia, alguns chegam a batizar seus filhos na Igreja. Não se trata de sectarismo, mas de definição. E centenas de freqüentadores assíduos, participantes e médiuns, na hora “h “correm para os braços da Madre Igreja, de onde, estruturalmente, nunca saíram.

O Espiritismo para eles é uma grande capa que os agasalha, mas jamais o aceitaram como uma mudança revolucionária na visão de homem e de mundo.

A idéia de atualizar irrita e amedronta os que estão mergulhados nessa visão cristã do Espiritismo.

Um Perfil do Movimento

Recentemente alguém dizia, entusiasmado, que estava freqüentando um centro perto de sua casa. Ele começou a dizendo: “eles ajudam a mais de 80 famílias” e arrematou “não sei se sou espírita.. ouço coisas boas.” Essa é a forma se caracterizam, de maneira geral, os centros: agências de prestação de serviços comunitários. O que é excelente, enquanto trabalho fraternal, de resto também praticado por clubes de servir, igrejas e organizações não-governamentais. Mas que não parece ter compromisso com a Doutrina Espírita, enquanto proposta revolucionária de entendimento da vida, do mundo e do homem.

Como acentuamos, existe uma confusão generalizada sobre a estrutura e os objetivos do Espiritismo, numa névoa espiritualista, mística, até supersticiosa, em relação aos Espíritos e ao plano extra físico.

Por isso muitos dos que fundam, dirigem e freqüentam os Centros Espíritas, não possuem uma mentalidade genuinamente espírita. Daí, a tendência majoritária de ser antes de tudo “cristão”, que significa, na realidade, manter-se ligado aos rituais e crenças do catolicismo, principalmente.

Podemos especular, nesse sentido, um perfil geral da maioria dos centros espíritas.

1. Quando alguém ou um grupo se decide a fundar um Centro Espírita, qual das alternativas abaixo é a mais decisiva?

a. ”Vamos fundar um centro para estudar e divulgar a doutrina”;

b. ”vamos fundar um centro para praticar a caridade material e espiritual”;

c. ”Vamos fundar um centro porque o guia de nossa sessão mediúnica mandou”.

2. Em seqüência, entre as questões abaixo, qual a que corresponde à realidade da maioria das entidades chamadas de espíritas?

a. Os dirigentes do centro são estudiosos da obra kardecista;

b. Os dirigentes lêem e pregam o evangelho;

c. Os dirigentes lêem e pregam a partir de mensagens espirituais.

3. Como a maioria esmagadora dos Centros Espíritas ocupa a maior parte do tempo em sessões mediúnicas, de vários tipos, das opções abaixo, qual a mais coerente com o comportamento desses centros?

a. Os médiuns são estudiosos da Doutrina;

b. As comunicações mediúnicas são passadas por severa investigação;

c. Quando há um médium principal, ele é tratado como um medianeiro que deve ser, como os demais, submetidos ao critério do exame de sua produção.

4. Por fim, nem todos os Centros estão preocupados com o conhecimento doutrinário, mas quando promovem reuniões de estudos, como é estruturado esse estudo?

a. Conhecer e aceitar o que está nos livros de Kardec e dos Espíritos;

b. Ler, analisar, questionar os textos de Kardec e dos Espíritos;

c. Ouvir preleções sem questionamentos.

Não será despropósito tentar uma apreciação estatística, ainda que aleatória, do perfil dos freqüentadores dos Centros, incluindo seus dirigentes, médiuns, trabalhadores:

70% - não tem interesse real na Doutrina, freqüenta para obter algum benefício ou por ser uma crença religiosa;

20% - tem algum interesse pela doutrina;

10% - tem real interesse pelo Espiritismo.

Se esse quadro for verdadeiro, o que significa atualizar o Espiritismo? A maioria nem sequer pensa nisso pelo simples fato que não pensa o Espiritismo, quanto mais atualizá-lo.

Quem Quer Mudar?

Ninguém muda ou se transforma enquanto sua situação, pensamento ou crença o satisfaz. A insatisfação é que cria a necessidade de mudar, de encontrar um novo ponto de equilíbrio, de satisfação.

Existem pessoas que estão frustradas mas que se mantém indecisas ou apenas questionam teoricamente, sem nunca se decidirem a refazer o próprio caminho. Outras, são apenas insatisfeitas consigo mesmas e projetam essa condição mental para a Doutrina ou o grupo. Nesses casos, não há ligação real com a idéia, ficando no nível dos melindres pessoais superlativos.

Considerando, na melhor hipótese, que cerca de 15% dos que se declaram espírita, sejam, em princípio, favoráveis à necessidade de atualização do Espiritismo, podemos refletir sobre o que isso significa na prática.

1. O que é atualizar o Espiritismo?

Em primeiro lugar, será preciso definir o que se quer dizer com “atualizar”. Muitos podem achar que atualizar é aceitar adendos de correntes paralelas ou com pontos de contato com o Espiritismo, o que não tem nada a ver.

Atualizar é um processo, é um fluxo aberto, mas com forte base na estrutura fundamental do pensamento de Allan Kardec. É uma abertura constante de questionamento seqüencial, contínuo e equilibrado, fruto de estudo, reflexão e observação. Será motivada por novos conhecimentos, descobertas científicas, filosóficas, políticas. Enfim, em razão de que a Doutrina disse a primeira palavra e foi elaborada por Allan Kardec com abertura para progredir, atualizar-se, conforme a sociedade progredisse.

Em outras palavras, não é uma aventura intelectual, elitizante ou diletante. É atitude responsável, pensada, aberta e segura, conseqüência de um estar no mundo consciente, atualizado, atuante.

2. O que deve ser atualizado?

Tudo o que, no contraste entre idealizações, formas tradicionais herdadas do cristianismo, enquanto doutrina uniexistencial, repressora e controladora, representar um contrasenso perante a consciência, a mudança de horizontes e descobertas que a inteligência, o bom senso, a pesquisa e a reflexão filosófica mostrarem que não serve para encaminhar a pessoa humana no encontro consigo mesma.

3.Qual a abrangência dessa atualização?

Todo o esforço de atualização deve ser feito na Doutrina, enquanto doutrina. Ou seja, não se trata de adaptá-la a correntes, fundir-se com idéias paralelas, semelhantes. O Espiritismo tem uma coerência, uma definição de seu próprio valor.

Se conseguir superar o ufanismo de achar como a terceira revelação, se conseguir abandonar a ilusão de auto-suficiência e capacidade de abranger todos os aspectos da vida e dar-lhes solução adequada e eficaz.

Se conseguir definir seu objeto, delimitando seu campo e aprofundar suas idéias, poderá auxiliar a humanidade com suportes de concepções e conceitos que servirão, como advertiu Kardec, de subsídios às mutações que se tornarão cada vez mais urgentes para o equilíbrio possível da sociedade.

Prontidão para Mudar

Podemos figurar a estruturação mental que define nosso ser, como a construção de um edifício e, a partir daí, absorvendo e fixando idéias e visões, que determinam nossa postura, nosso entender das coisas.

É como empilhar tijolos de conhecimentos, sedimentá-los. O processo é complexo, mas de qualquer forma, está também dentro dos mecanismos de defesa que desenvolvemos.

No campo das idéias e da fé, por exemplo, crer de forma absoluta, cristaliza a visão das coisas, que serão invariavelmente analisadas dentro do nossa posição conceitual. Criamos um bloco de idéias que definem nosso estar no mundo.

Enquanto esse bloco for mantido, estamos salvos e seguros.

Resistimos tenazmente a abandonar essa segurança.

Referindo-se à resistência do neurótico em superar as neuroses, Freud afirmou que existe um “benefício secundário da neurose” ou seja, embora incomodando, elas se entranham no caráter e a pessoa cria uma acomodação mental que cria uma resistência à superação. Percebe que para supera-la precisa reestruturar-se, desacomodar-se e resistir a esse esforço renovador. Seria como a pessoa que tem um desvio doloroso na coluna vertebral e ao invés de procurar a solução do problema, vai se ajustando, acomodando sua postura de tal maneira que a dor desapareça. Então, ela pode andar torta o resto da vida.

Creio que o mesmo exemplo pode ser aplicado às resistências que temos para reestruturar idéias e crenças. É um processo doloroso, solitário e abre espaços vazios e de dúvidas constantes, até que você alcance um relativo equilíbrio com as novas idéias.

Mudar é um processo desestruturador. É como derrubar paredes construídas, abrir espaços que causam ansiedade. São notórios os casos de “perda de fé” que arrojam pessoas ao descrédito, à indiferença ao niilismo e a pensar ou tentar pensar, ao contrário de tudo que pensava anteriormente.

Mudar conceitos significa um redimensionamento estrutural da mente. Referenciais são mudados. Pontos de apoio e formas de entender e até de falar, entram em acelerada transformação. É um processo devastador, mas também libertador.

Principalmente quando essa mudança representar o despojamento de preconceitos e abrir o Espírito para a diversidade, a relação conflituosa do ser consigo mesmo e com os outros e a procura de caminhos capazes de lançar luzes sobre a visão perturbada e nebulosa dos fatos.

Se não acontecer isso, será o mesmo que mudar os mesmos móveis numa sala, dando novo visual à decoração. São os mesmos conceitos, apenas deslocados sem transformação real.

Claro que estamos falando de mudança num sentido positivo, construtivo. Porque não podemos chamar de mudança o simples abandono de idéias, ao transformação das idéias em escárnio ou cinismo e ainda mais em decadência vivencial.

Ou como subterfúgio para mascarar rebeldias sem sentido ou luta pelo poder.

Toda mudança exige maturação de propósitos para não ser mero rompante de entusiasmo ou posição de rebeldia ou fixação opositora.

Sistemáticos e fanáticos não podem suportar mudança, pois isso representa um suicídio afetivo e um desequilíbrio pessoal.

Se a inteligência e o bom senso podem estabelecer os limites para a flexibilidades do pensamento espírita para que não perca sua identidade, a atualização do pensamento doutrinário só será efetivo na medida as pessoas estejam prontas para aceitar e reestruturar os conceitos.

Porque atualização, mudança, renovação, significam dispêndio e energias, reflexão e decisão para enfrentar o desacordo dos que não desejam ou recusam-se a mudar. Cria-se um hiato, desencontram-se vibrações antes bem afinadas. Amigos se transformam em inimigos, afastam-se ou ficam indiferentes.

Podemos fazer um excelente projeto de atualização, conforme pensou Allan Kardec. Mas só será efetivado se estivermos prontos para a mudança . Ou seja, criar em nós mesmos condições de reestruturação mental, e a ousadia de enfrentar o vácuo que se abre, conceitualmente, enquanto trafegamos da certeza dos velhos padrões, pela incerteza dos novos desafios, até que se consolidem.

A Linguagem

Para atualizar o Espiritismo, nosso maior inimigo, no campo de expressão e mesmo de entendimento, é a linguagem.

Allan Kardec bem que tentou desenvolver uma linguagem que se adequasse ao novo sentido e análise que o Espiritismo faz da vida e das relações entre os “mortos” e “vivos”, mas sucumbiu às necessidades de comunicação e teve que usar palavras consagradas, dando-lhe um significado diferente. Entretanto, não se descarta o significado das palavras tradicionalmente impregnadas na cultura e nos mecanismos mentais fixados no transcursos das existências, que permanecem com uma significação original.

Por exemplo, quando ele fala dos Anjos de Guarda, a tendência é pensar em Espíritos com as formas ou com procedimentos que a tradição católica permeou nossa imaginação. E, por conseqüência, pensa-se no Anjo da Guarda como uma anjo real, alguém, um Espírito de “luz” , para exprimirmo-nos mais espiritistamente, que nos ajuda. As limitações que Kardec dá ao trabalho dos Anjos da Guarda não inibe o pensar neles na forma tradicional.

Além disso, dá o colorido também católico ao plano extra físico, irremediavelmente dividido entre o bem, os Espíritos amigos, Anjos de Guarda, Protetores e os maus, obsessores, perversos, etc.

A linguagem exprime ou forma imagens mentais que se sedimentam. Na memória espiritual permanecem os traços mnemônicos conceituais, pois cada imagem é envolvida numa condição emocional e é a emoção que a traz de volta ao consciente.

Os espíritas gostam de chamar Jesus de “irmão maior”, desclassificando-o da condição de Deus e de parte da Santíssima Trindade católica. Mas pelo modelo roustainguista-emmanuelino que domina nosso movimento, quando se pensa em Jesus, pensa-se no Cristo, na cruz, na manjedoura. Os centros espíritas costumam pendurar quadros, quando não, imagens desse Jesus Cristo idealizado pela Igreja.

Também costumam chamá-lo de Nosso Senhor, linguagem inconcebível, em termos espíritas, mas comum entre os espíritas-cristãos. Esse conflito entre o irmão maior e Nosso Senhor, entre o Filho do Homem e o Filho de Deus, que foi criado pela teologia católica, está muito presente.

Tanto é verdade que não se fala dez palavras no Espiritismo, sem que pelo menos cinco se refiram ao Amado Mestre, ao Cordeiro de Deus, ao que Evoluiu em linha reta e outras expressões, denotando que a linguagem trai o sentimento, a idéia, o desejo.

Falar a esses crentes em mudar a Doutrina para que ela seja menos “cristã” e mais “espírita” é o mesmo que tirar a Bíblia dos protestantes.