Artigo de Eugênio Lara - Outubro de 2000

O Culto e o Inculto

Há alguns indivíduos “bem-intencionados” que vêm utilizando a infra-estrutura da Federação Espírita do Pará para disseminarem o que julgam ser conveniente, em termos de Espiritismo, através de e-mails chatíssimos e redundantes, incomodando os que se utilizam desse meio de comunicação de modo sério, muitas vezes em nível profissional. É o que em informática chama-se de spam, ou seja, aquela mensagem inconveniente e irritante que surge em nossa caixa postal sem que nada possamos fazer. Podemos recusar aquele panfleto eleitoreiro ou evangélico distribuído nas ruas, mudar de estação, de canal ou mesmo desligar a TV, mas quando menos esperamos surge aquele e-mail mala, capaz de tirar do sério o mais calmo dos mortais. Ainda bem que, em geral, os programas que gerenciam o envio e recepção de e-mails possuem recursos que bloqueiam o remetente intolerante e teimoso, pois nem sempre os pedidos de súplica para que o abusado retire nosso nome de sua lista de endereços dão resultado. Já vimos pessoas mudarem o seu endereço eletrônico a fim de evitar as “fraternais mensagens” que abarrotam nossa caixa postal. Não é necessário chegar a tanto, pois basta bloquear o remetente teimoso e distraído, que muitas vezes, mereceria como retorno um “e-mail bomba”, capaz de inviabilizar tecnicamente o seu hardware ou mesmo o software utilizado para tal peraltice. Pelo visto, a federação citada se esmera em distribuir a torto e a direito e-mails conclamando os espíritas a exercitarem a ridícula prática do Culto do Evangelho no Lar, como se ela fosse a panacéia da salvação das almas frágeis e sedentas do Coração Sagrado de Jesus. Nesse aspecto, os cristãos são mais avançados do que esses “espíritas”, pois muitos realizam o Estudo do Evangelho, o Estudo da Bíblia, práticas adequadas aos parâmetros, sacramentos e dogmas próprios das religiões cristãs. Culto é lá no templo. Na católica é missa, nas evangélicas é culto. Os cristãos sabem muito bem o poder das palavras, e sabem utilizá-las de forma adequada, pois quando se referem à Bíblia como A Palavra de Deus, não estão sendo incoerentes para com o que acreditam. Já certos espíritas, por influência explícita de algumas correntes evangélicas, defendem com unhas e dentes o chamado Culto do Evangelho no Lar e ainda tentam fundamentar essa prática inadequada ao espírito do Espiritismo, nos textos de Allan Kardec, esquecendo-se de que próprio fundador da Doutrina nos chamou a atenção para o uso de palavras adequadas: “para idéias novas, palavras novas”. É muito raro, quase impossível, um kardecista convicto se tornar protestante ou católico. Mas o contrário é bem comum, ainda mais nas fileiras espíritas, que abrigam grande quantidade de ex-católicos, ex-protestantes, ex-pastores que trazem para a seara espírita a mentalidade cristã, religiosa e farisaica, compreensível sob o ponto de vista psicológico e antropológico, mas inadequada sob o ponto de vista da identidade kardecista. Basta ver o nome de boa parte dos centros espíritas, que procuram imitar a experiência acumulada no seio do cristianismo, nem sempre compatíveis com o pensamento kardequiano. Duplo Sentido Mas, afinal, o que é um culto? Esta é uma palavra latina de duplo sentido. Culto é aquele indivíduo preparado intelectualmente, que possui cultura, conhecimento, informação acerca de determinada área da cultura, amiúde, em campos interdisciplinares do conhecimento humano. Culta é aquela criatura instruída, que possui ilustração, conhecimento enciclopédico. E o inculto? É todo aquele que, ao contrário do citado, se acha privado do conhecimento necessário a uma boa e vasta cultura. É o sujeito rude, tosco, rústico, árido, agreste, conforme definição encontrada em bons dicionários do ramo. O outro sentido, tão usual quanto, é o de adoração. Na significação do velho Aurélio é: 1. adoração ou homenagem à divindade em qualquer de suas formas, em qualquer religião: o culto da Santíssima Trindade; o culto das forças da natureza. 2. Modo ou sistema de exteriorizar o culto; ritual: o culto cristão; o culto budista. 3. Cerimônia de culto protestante. (...) 5. Fig. Adoração, veneração, reverência, preito. Como se vê, não há nenhum tipo de sentido oculto nessa questão. As acepções são claras e não há como relacionar tais significados ao caráter racional e filosófico do Espiritismo. Pode-se estudar o Evangelho no lar, mas nunca cultuá-lo em nome da Doutrina Espírita, tanto quanto podemos estudar o Baghavad Gita, a Bíblia ou o Alcorão se o grupo familiar quiser fazê-lo, e se sentir bem com esse tipo de estudo. Por que não a expressão Estudo do Espiritismo no Lar? O objetivo de se reunir os familiares e afins para estudar, debater e relacionar os princípios espíritas a suas vidas, ao seu dia-a-dia é uma boa prática, salutar e edificante. Se aqueles que defendem a expressão Culto do Evangelho no Lar afirmam que a divergência aí é mera questão de forma, basta adotar outro procedimento semântico e se assumirem como espíritas: é simples. A questão de forma deve valer tanto para a expressão adotada como para uma outra, alternativa e mais adequada. Se há resistência, então não se trata de forma, mas de conteúdo. E aí entramos numa questão realmente polêmica, pois os conteúdos do Espiritismo deveriam ser vivenciados sem que seus adeptos corressem o risco de perder sua própria identidade. Há periódicos “espíritas” que pelo nome, títulos, imagens e ilustrações se confundem com qualquer informativo cristão, católico, evangélico. O que dizer então dessa expressão aparentemente bonita, Culto do Evangelho no Lar, praticada por pessoas espíritas? Essas pessoas poderiam exercitar tal prática se vivessem num país muçulmano? Como seriam vistas, identificadas? “Ah! hoje não posso ir ao cinema por que tem o Culto do Evangelho”. Até que se prove o contrário, quem ouve tal assertiva fica imaginando tudo menos que o sujeito seja espírita. A atitude da Confederação Espírita Pan-americana (CEPA) de questionamento e combate a mais esse antigo hábito exótico no movimento espírita é mais do que justa, tem o seu fundamento doutrinário e a intenção de esclarecer os espíritas quanto a práticas que não condizem com os ideais kardequianos. Todavia, por preconceito contra a entidade, forma- se um cavalo de batalha nessa e em outras questões aparentemente controversas, mas que devem sim ser debatidas com parcimônia, fraternidade e respeito mútuo. Como sempre, esse tipo de divergência demonstra a atitude inculta e pseudo-sábia em relação a Kardequiana. Se os defensores do tal do Culto do Evangelho no Lar estudassem com atenção as obras do Fundador da Doutrina, ficaríamos livres desse tipo de embate ridículo e inútil, mas que ganha ares de importância na medida em que contribui ainda mais para a descaracterização do Espiritismo. Kardec e o Culto Nesse sentido, torna-se oportuno lembrar os depoimentos do Fundador, contidos em um livro pouco lido e conhecido, intitulado Viagem Espírita em 1862 (Ed. O Clarim, 2ª edição), que faz parte das 30 obras que compõem a Kardequiana. Cabe lembrar que, a partir de 1860, Kardec se viu obrigado a sair de seu gabinete e viajar por toda a França a fim de atender aos anseios de miríades de grupos espíritas que começaram a surgir naquele país e, posteriormente, por toda a Europa. Esses grupos viam nele, como não poderia deixar de ser, a referência e orientação necessárias ao desenvolvimento e aprimoramento das atividades espíritas. Trata-se de uma obra magnífica, de caráter histórico, onde o mestre, além das orientações doutrinárias, morais e até administrativas, fala de si próprio, de sua postura em relação ao movimento espírita e se posiciona em relação a questões prementes para a época. No final deste livro, o Bom Senso Encarnado, no dizer de Flammarion, responde a uma série de questões que foram formuladas a ele pelas centenas de grupos espíritas recém- formados. Uma delas refere-se ao uso de práticas exteriores de cultos entre os espíritas. Transcrevo, pela importância de suas palavras, a sua resposta a uma questão que, fosse hoje, seria algo do tipo: “devemos praticar o Culto do Evangelho no Lar”? “Tudo nas reuniões espíritas deve se passar religiosamente, isto é, com gravidade, respeito e recolhimento. Mas é preciso não esquecer que o Espiritismo se dirige a todos os cultos. Por conseguinte ele não deve adotar as formalidades de nenhum em particular. Seus inimigos já foram muito longe, tentando apresentá-lo como uma seita nova, buscando um pretexto para combatê-lo. É preciso, pois, não fortalecer essa opinião pelo emprego de rituais dos quais não deixariam de tirar partido, para dizer que as assembléias espíritas são reuniões de protestantes, de cismáticos etc. Seria uma leviandade supor que essas fórmulas são de natureza a acomodar certos antagonistas. O Espiritismo, chamando a si os homens de todas as crenças, para uni-los sob o manto da caridade e da fraternidade, habituando-os a se olharem como irmãos, qualquer que seja sua maneira de adorar a Deus, não deve melindrar as convicções de ninguém pelo emprego de sinais exteriores de qualquer culto.”(grifo meu). “São poucas as reuniões espíritas, por menores que sejam os grupos, que, sobretudo na França, não tenham membros ou assistentes pertencentes a diferentes religiões. Se o Espiritismo se colocasse abertamente na área de uma delas, afastaria as outras. Ora, como há espíritas em todas, assistiríamos à formação de grupos católicos, judeus, ou protestantes, assim perpetuando o antagonismo religioso que é missão do Espiritismo abolir.” “Esta é, também, uma das razões pela qual deve-se abster, nas reuniões, de discutir dogmas particulares, o que, necessariamente, melindraria certas consciências. As questões morais, entretanto, são de todas as religiões e de todos os países. O Espiritismo é um terreno neutro sobre o qual todas as opiniões religiosas se podem encontrar e dar-se as mãos.” (pág. 145, grifo meu). (...) Interessante notar que no Brasil o surgimento do Espiritismo se deu, a princípio, nos mesmos moldes da França. Poucos dominavam o francês para poderem ler as obras do Fundador. Os primeiros grupos de estudos espíritas surgiram na Corte, a partir de 1860 e eram formados por pessoas da elite. Posteriormente o movimento se disseminou e se estendeu entre as classes populares, ocasionando um fenômeno sincrético de caráter antropológico dificil de se dimensionar e avaliar. Ao invés, como afirma Kardec no texto citado, de os espíritas se situarem num terreno neutro em relação a questões religiosas, levaram para os centros espíritas as suas idiossincrasias, como faz o siri, aquele simpático crustáceo que, para sobreviver na praia, traz embutido em sua carapaça a água necessária, a fim de extrair o oxigênio essencial a sua subsistência. Os espíritas fazem o mesmo ao levarem para o centro suas necessidades religiosistas. Daí a existência de movimentos como Fraternidade dos Discípulos de Jesus, A Reforma, Sinagoga Espírita Nova Jerusalém, dentre tantos outros que traduzem a influência da formação religiosa das pessoas que compõem esses agrupamentos. Quanto aos aparatos exteriores de culto, Kardec é bem taxativo: “O emprego dos aparatos exteriores do culto teria idêntico resultado: uma cisão entre os adeptos. Uns terminariam por achar que não são devidamente empregados, outros, pelo contrário, que o são em excesso. Para evitar esse inconveniente, tão grave, aconselhamos a abstenção de qualquer prece litúrgica, sem exceção mesmo da Oração Dominical por mais bela que seja. Como, para fazer parte de um grupo espírita, não se exige que ninguém abjure sua religião, permita-se que cada um faça a seu bel prazer e mentalmente, a prece que julgar a propósito. O importante é que não haja nada de oficial. O mesmo se pode dizer com relação ao sinal da cruz, ao hábito de se colocar de joelhos etc... Sem esta linha de conduta neutra, não se poderia impedir, por exemplo, que um muçulmano, integrante de um grupo espírita, se prosterne e coloque a face contra a terra, recitando em voz alta sua fórmula sacramental: ‘Só há um Deus e Maomé é o seu profeta!’” “O inconveniente não existe quando as preces feitas em intenção de qualquer pessoa, são independentes de todo e qualquer culto particular. Dito tudo isso, creio supérfluo salientar o quanto haveria de ridículo em fazer-se toda uma assistência repetir em coro uma prece ou fórmula qualquer, como alguém me afirmou já ter visto ser praticado.” “Deve ficar bem entendido que o que acaba de ser dito não se aplica senão aos grupos e sociedades, constituídos de pessoas estranhas umas às outras, porém nunca às reuniões íntimas de família, nas quais, naturalmente, cada pessoa é livre de agir como bem entender, uma vez que, em tal ambiente, não se corre o risco de melindrar a ninguém.” Protestante Oculto Sem dúvida, todos os espíritas deveriam ler esse livro com atenção e mente aberta, a fim de se esclarecerem sobre pontos que ainda provocam discórdia. A leitura desavisada do último parágrafo citado poder levar a uma conclusão errônea de que toda a argumentação usada neste artigo cai por terra em função da afirmação do Mestre de que tais orientações se destinam aos grupos espíritas e que, portanto, não há nada demais em se praticar o Culto do Evangelho no Lar. Como afirmamos no início, cada grupo familiar tem todo o direito de estudar ou cultuar o que bem entender: o Evangelho, o Alcorão, o Livro de Mórmon, o Baghavad Gita ou qualquer obra religiosa. Se um espírita quiser ter um altar cheio de santos, estátuas de orixás, quadros e badulaques próprios de qualquer forma de culto em sua casa, nada a opor. Se quiser estudar o Evangelho como o fazem os protestantes, com as mesmas fórmulas e posturas, nada também a opor. Mas daí a levar essa parafernália para o centro espírita há uma distância muito grande. Inadmissível mesmo é patrocinar práticas religiosas por meio das instituições espíritas como fazem grupos de São José do Rio Preto-SP, do Pará e de diversas regiões do País. A incultura espírita destes senhores é de dar dó, a miopia de suas análises não tem a menor sustentação. E ainda tentam fundamentar suas idéias esdrúxulas com a chancela de Allan Kardec. Aí não dá para aguentar. No caso da defesa intransigente do Culto do Evangelho no Lar, das duas uma: ou o sujeito é inculto mesmo ou é um protestante oculto, travestido de espírita. Um lobo em pele de cordeiro, sem o saber. Um espírito pseudo-sábio, este sim, um verdadeiro perigo para o perfeito entendimento do Espiritismo.