Artigo de Saulo de Meira Albach - Curitiba - Janeiro/Fevereiro de 2000
Recentemente os órgãos da imprensa brasileira noticiaram a realização de uma festa suntuosa na cidade do Rio de Janeiro. Uma festa para comemorar o aniversário do cachorro de uma senhora dita da alta sociedade. Uma emergente, para usar o termo da moda.
É certo que ninguém é contra o respeito aos animais. Mas quando se passa a tratá-los como se fossem seres humanos (será influência do ex-ministro Antônio Magri?) parece que se pode identificar um comportamento doentio por parte de seus donos (ajudem-me os psicanalistas).
O mais triste é constatar o grau de futilidade a que chegam certos segmentos da nossa sociedade. Especialmente numa cidade como o Rio de Janeiro onde os contrastes sociais reproduzem o que se passa de norte a sul em nosso país de uma forma muito forte e marcante. Lembro-me da primeira vez em que estive na Cidade Maravilhosa. Admirado com as belezas naturais da Zonal Sul deparei-me, de repente, com uma imensa favela (Rocinha). O contraste entre riqueza e pobreza está exposto como uma imensa ferida no coração do Rio.
Alguns poderão argumentar que o dinheiro gasto na festança é dela e o uso dele é problema pessoal da referida senhora. Até certo ponto, sim. Como pessoa livre e capaz ela pode dispor do seu dinheiro da maneira que lhe convier. Contudo a questão está posta sob o prisma da ética, da solidariedade humana. Se não houvesse pessoas passando fome; se a violência urbana não estivesse batendo em nossa cara diariamente como reflexo da desestruturação social em que vivemos, então, talvez se pudesse admitir que o desejo daquela nobre senhora se realizasse... Evidente que poucas pessoas da classe alta preocupam-se com o destino das classes pobres. Preocupam-se com a violência que as cerca mas não descem à origem do problema. Não abririam mão de nenhum de seus privilégios os quais, dizem sempre, foram conquistados com o esforço do trabalho. Bem sabe-se que, quase sempre, as grandes fortunas se constróem as custas da exploração do mais fraco, do roubo, da corrupção, etc. Uma interessante questão está assim posta em O Livro dos Espíritos sobre este tema. Transcrevo-a:
808. A desigualdade das riquezas não tem sua origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do que a outros?
- Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo?
808.a) A riqueza hereditária, entretanto, seria fruto das más paixões?
- Que sabes disso? Remonta à origem e verás se é sempre pura. Sabes se no princípio não foi o fruto de uma espoliação ou de uma injustiça? (...)
Deolindo Amorim comentando a realização de banquetes suntuosos noticiados no Jornal do Brasil, em 1983, disse:
Nada temos com as pessoas e com o modo pelo qual fazem uso de seu dinheiro, seja em banquetes, seja em turismo etc.etc. O que temos em vista é o fato, que já está no domínio público. E o fato é justamente a fartura de um lado, às vezes com extravagância, e a dolorosa falta de alimentos do outro. Situações paralelas dentro da mesma sociedade. (...) O que se sente, no fundo desse contraste, é um desequilíbrio injusto e profundo, permitindo que, ao mesmo tempo, uns tantos comam de mais e outros tantos morram de inanição. O mundo ressente-se da falta de solidariedade, embora tenhamos de ressalvar sempre as belas e edificantes exceções indiscriminadas nos momentos mais difíceis. (in O Espiritismo e os Problemas Humanos, Ed. USE, 1985, p. 51).
É preciso estarmos atentos para perscrutar em nossa organização social as causas das desigualdades sociais. O Espiritismo enquanto filosofia de vida nos convida a tanto. Esta festa boa pra cachorro revela o lado fútil da alta sociedade. E afronta todos os padrões da comunhão social que nos impele a, pelo menos, não agredir os mais pobres.
Saulo de Meira Albach é membro do CPDoc - Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, colaborador do Abertura e Delegado da CEPA em Curitiba/PR.