Artigo de Jaci Régis - Setembro de 2000

O Homem do Cachorrinho

Vi-o caminhando cabisbaixo, como sempre foi seu costume. Baixinho, medianamente corpulento, era famoso porque, nas refeições, sempre repetia os pratos oferecidos no restaurante.

Engenheiro, foi meu chefe algumas vezes. E ocupou cargos relevantes na administração da empresa em que ambos trabalhávamos.

E ele, ali estava, andando com seu cachorrinho, um pequeno cão que, todavia, parecia, mesmo assim, puxá-lo. De outras vezes, vi-o carregando o animal no colo, meio desajeitado, mas com um toque de carinho, como se fosse, talvez, um neto....

Aposentado, aquele homem reduzia-se, aos meus olhos, a mero vivente, sem encontrar algo que, de alguma forma, sustentasse o élan da vida.

Minha afirmação de que 90% da humanidade é fútil, no sentido de não encontrar motivação interna para sua própria vida, tem sido confirmada, ao longo de minha experiência.

Enquanto a pessoa é jovem as motivações externas levam-no a procurar meios de sobrevivência e de destaque profissional. O conflito com colegas e competidores, as expectativas de crescimento na profissão e, quando casada, a criação dos filhos, servem como estímulo poderoso e mesmo inevitável para que a vida tenha algum significado, mesmo com muitas reclamações.

Entretanto, se a existência transcorrer em toda a juventude e madureza sem definições capazes de despertar a espiritualidade, quando vem a aposentadoria, a velhice e cessam as atividades produtivas, profissionais, o mundo fica cinzento, morno, desmotivado.

Agarrar-se, por exemplo, a um cão, sugere a motivação externa perdida, canalizando para o animal emoções que só têm sentido na relação humana.

Isso me leva a pensar na questão da espiritualidade. Ou seja, no que cada um desenvolve em si mesmo, como parâmetro, diretriz ou função da existência. Isto é, se seu mundo interior é rico ou pobre.

A falta desse clima de espiritualidade, que dá um significado diferente ao viver humano, mobiliza energias para encontrar em atividades externas, de lazer, toda a resposta que não é encontrada em si mesmo.

Dentro desse prisma, certas pessoas encontram grande dificuldade em compreender como pode alguém ter energia própria capaz de, certa forma, entreter a vida de maneira produtiva, entregue a um ideal.. Para elas os que assim procedem parecem desprezar as "coisas do mundo" e não demonstrar interesse em participação de atividades comuns à grande maioria.

Ao ouvir tais sermões, quase admoestações, lembro-me da lição de Buda. Quando Sidarta saiu de seu palácio, emprenhou-se numa região onde eremitas permaneciam imóveis, improdutivos, comendo larvas, não tomando banho, renunciando à vivência.

Sidarta cansou-se daquilo e foi até um rio, banhou-se, comeu e interagiu com as pessoas. Um barco ia passando pelo rio e ele ouviu um mestre dizendo a seu discípulo, sobre como encontrar a melhor forma de usar seu instrumento musical. Disse o mestre: se a corda ficar muito frouxa, não tocará porque não produz som. Se esticar demais, a corda pode partir-se.

Buda, então, compreendeu que o caminho do meio é sempre o melhor. Assim, não devem as pessoas que olham certos semelhantes dedicados a tarefas de serviço a um ideal, se assustarem. Nada impede que a espiritualidade que cada um pode desenvolver em si mesmo e que se exprime no seu estar no mundo, represente a fuga do lazer justo, nem do divertimento equilibrado.

Música, teatro, cinema, viagens de recreio podem, perfeitamente fazer parte da vida terrena, sem que, por si possam, como gostariam muitos, se constituírem na resposta que preencha o coração.

São úteis como medidas complementares, hiatos de refazimento. O cerne da vida, a espiritualidade real, mobiliza as energias para atividades criativas, produtivas, que de alguma forma beneficiem a sociedade, as pessoas.

Também gosto de repetir a lição do Eclesíastes:" Lembra-te de teu Criador nos dias de tua mocidade...." Porque a busca tardia de Deus, no sentido transcendental e intuitivo, não resolve o vazio da vida vivida sem consistência, Quase sempre transforma-se em lamentações e endurecimento da alma, nos recursos de auto defesa que cada um pode desenvolver para mascarar o tédio e o vácuo íntimo.

É difícil, para quem permanece no nível das necessidades de estimulações externas, sem contrapartida interior, entender como o coração vibra e como a mente se equilibra na serenidade de um ideal, mesmo que nesse caminho, se levantem questões, conflitos e problemas.

Jesus de Nazaré ensina que certo homem tendo descoberto um tesouro , foi, vendeu tudo o que tinha para possui-lo. Na interpretação dessa lição, há quem veja o apelo à solidão, ao caminho individualista, sem alegrias e sem participação. Entretanto, no meu ver, ele queria dizer que esse tesouro é essa motivação interna, sem jactância e sem missionarismo, que invade o ser, quando descobre um caminho que lhe traz respostas, e que desenvolve nele uma força que impulsiona, mantém, preserva, apesar de tudo.

É uma visão particular que só entendida quando partilhada. Quem vê de fora, olhando aquele indivíduo com suas formas de viver, nem sempre entende suas motivações.

O homem com seu cachorrinho, me fez pensar na vacuidade de muitos, sem que, naturalmente, pudesse ou possa saber o que realmente se passa no seu coração. Apenas ao ve-lo, me levou a pensar que aprender a ser um ser pleno é um longo caminho, uma estrada em que as flores existem no entusiasmo e na emoção interna, mesmo que externamente a estrada não se apresente tão florida ou colorida.

Claro que estou falando de atitudes sadias, de caminhos produtivos, pois qualquer fixação é nociva.

Ninguém está obrigado, nem deve pensar, que é um herói, que está fadado a grandes aventuras e empreendimentos fabulosos. Sentir-se relativamente realizado nas pequenas tarefas ou nos pequenos empreendimentos é tão gratificante e não raro menos pesado do que enfrentar desafios maiores.

Quando o coração está pleno, a alma se engrandece e eleva.