Artigo de Marcelo Coimbra Régis - Novembro de 2000

Atualizar, Simplificar, Vivenciar ?

Contribuições ao debate sobre a atualização da Doutrina Espírita

I - Introdução
Gostaria de oferecer alguma contribuição ao tema Deve o Espiritismo Atualizar-se?, assunto central do XVIII Congresso Espírita Pan-americano.
É fato que a parcela do movimento espírita alinhada às idéias primeiramente defendidas por Jaci Régis, em seqüência pelo chamado grupo de Santos (e esse grupo se estende para além das fronteiras da cidade de Santos) e mais recentemente à CEPA (Confederação Espírita Pan-americana) se encontra num momento crucial, de inflexão. Tal parcela do movimento espírita sente a necessidade de atualizar a Doutrina Espírita e vem procurando os caminhos para tal. Cito a contribuição de Ademar A.C. dos Reis no VI SBPE - Como? Uma proposta Metodológica para atualizar o Espiritismo - como uma das primeiras propostas estruturadas para tal atualização. Recentemente, no artigo A Dificuldade de Aceitar o Novo publicado no Jornal Abertura, Jaci Régis também expôs sua visão sobre o assunto. Tal inquietação tem também me assolado. Ligado afetivamente, mentalmente e graças a Internet eletronicamente a várias pessoas desse grupo passei a refletir sobre como poderíamos atualizar a Doutrina Espírita (já que considero a respondida a pergunta do Congresso: Deve o Espiritismo Atualizar-se: minha resposta é SIM).
II - Desenvolvimento do Tema
Atualizar no Aurélio (o famoso pai dos burros) é definido como:
Atualizar. Verbo transitivo direto e pronominal: tornar(-se) atual; modernizar(-se)
Portanto nesse sentido atualizar a Doutrina Espírita seria modernizar a mesma, absorvendo os progressos científicos e morais de nossa época.
II.1 - A Proposta Original do Espiritismo:
Antes de prosseguir, vamos analisar a proposta original do Espiritismo. Partindo de uma base fatual sólida, ou seja , partindo de dados, de evidências, Allan Kardec postulou preceitos filosóficos e morais tomando de empréstimo, quando conveniente, algumas teorias já consagradas na sua época. Em outros casos Kardec formulou novas teorias. Dessa forma a moral espírita se baseia na moral de Jesus, a explicação dos fenômenos mediúnicos se baseia no magnetismo/vitalismo e a teoria evolutiva espírita é inédita. Assim, notem bem, o Espiritismo tem sua base em fatos. A proposta original espírita era avançar através do binômio (e sempre nessa ordem) Pesquisa(Fatos) / Interpretação (Filosófico-Moral). Dessa forma o Espiritismo na época de Kardec, era atual, moderno.
Com o falecimento de Kardec e os desvios inoculados na Doutrina Espírita a mesma se afastou do binômio acima. Passou a ser dogmática, a possuir toda a verdade, cristalizando-se. Muito importante foi a postura de sabe-tudo assumida pelo Movimento Espírita. Agora é a ciência que alcança o Espiritismo. A busca de fatos é desprezada pois nos cabe, como escolhidos, propagar a mensagem e converter nossos irmão desafortunados. Bom acho que todos vocês leitores do Abertura conhecem bem a trajetória do Movimento Espírita de forma que não é necessário repisar nesse terreno.

II.2 - O que atualizar?
II.2.a - Conceitos Básicos / O Livro dos Espíritos:
Já que é consenso a necessidade de atualização da Doutrina Espírita, a mesma deve derivar da insatisfação às respostas proporcionadas pela Doutrina Espírita a algumas questões. Vamos tentar responder a questão - o que atualizar? percorrendo os tópicos abordados por Kardec no Livro dos Espíritos:

Livro Primeiro: As causas Primeiras:
DEUS: Seria antiquada, ultrapassada a concepção Espírita de Deus? Algum fato novo nesses mais de 140 anos que nos fizesse atualizar esse conceito? A resposta me parece claramente não.
Elementos Gerais do Universo (Conhecimento do princípio das coisas - espírito e matéria - propriedades da matéria - espaço universal); Criação (Formação dos mundo - formação dos seres vivos - povoamento da terra -Adão - diversidade das raças humanas - pluralidade dos mundos) ; Principio Vital (Seres Orgânicos e inorgânicos - a vida e a morte - inteligência e instinto): nesses aspectos tenho absoluta certeza de que a ciência evoluiu em muito de 1857 para cá. Claramente nesses pontos o Espiritismo está de alguma forma antiquado. A biologia, a genética, a medicina, a física evoluíram grandemente em 140 anos. Hoje conhecemos o DNA, a seleção natural, a física quântica, a teoria da relatividade, nossas sondas já foram a todos os planetas do sistema solar, de forma que temos muito o que atualizar nessa parte da Doutrina Espírita.
Livro Segundo: Mundo Espírita ou dos Espíritos:
Uma rápida análise sobre os temas abordados nesse Livro nos mostra que o Espiritismo continua muito atual, apesar dos avanços da parapsicologia nesse campo. Assim ao discorrer sobre os Espíritos, sua encarnação, pluralidade das existências, vida espírita, etc. a contribuição do Espiritismo ainda é muito moderna e atual carecendo de novas pesquisas, novos fatos e aprofundamento. Aqui antes de atualizar seria necessário pesquisar. Seria necessário conhecer novos fatos, novos fenômenos, investigar o mundo espiritual, suas relações com o mundo corporal. Ou seja precisamos evoluir.

Livro Terceiro: Leis Morais
Não me parece que a moral de Jesus tenha sido ultrapassada. Assim nesse campo podemos atualizar a linguagem, a abordagem, exemplificando com vivências mais atuais, porém o cerne da moral de Jesus se manteria o mesmo que o postulado por ele a 2000 anos.

Livro Quarto: Esperanças e Consolações:
Em minha análise aqui se encontra a contribuição mais inédita da Doutrina Espírita, a teoria da evolução infinita e das penas transitórias para faltas transitórias. Esse livro seria o acabamento da filosofia espírita ao humanizar o espiritismo. Portanto não vejo muito espaço para atualização aqui.

II.2.b - Obras Básicas Complementares:
A mesma análise pode ser realizada tomando-se como base as outras obras básicas da codificação. Quais seriam os tópicos a serem atualizados?

O Livro dos Médiuns:
Por se tratar de obra dedicada às relações com o mundo espiritual, oferecendo técnicas, procedimentos e classificações dos fenômenos vejo aqui a necessidade de aprofundar as investigações, oferecendo novos fenômenos e técnicas mediúnicas. No estágio atual das pesquisas psíquicas O Livro dos Médiuns é ainda muito atual, talvez por incompetência e falta de investigação e compilação sérias.

A Gênese:
Esse livro se alinha com o mesmo discutido acima no Livro Primeiro de o Livro dos Espíritos. Cabe aqui uma total atualização. Os conceitos expressados em A Gênese eram condizentes com as teorias da época ou com a falta de conhecimento da ciência de então sobre vários dos fenômenos naturais. Seguindo a tendência holística e no afã de prover explicação a tudo através da ótica da Doutrina Espírita e acreditando que os Espíritos possuíam conhecimentos superiores aos encarnados, Kardec tentou estabelecer um sistema geral sobre os fenômenos naturais.

O Céu e o Inferno:
Claramente podemos identificar duas necessidades distintas. Enquanto a Parte Primeira (Do céu e do Inferno) necessita de atualização, ou talvez ser encarada somente por seu valor histórico, a Parte Segunda (Morte) é realmente um trabalho de investigação científica que deve ser aprofundado e complementado

O Evangelho Segundo o Espiritismo:
Nesse caso, como no livro terceiro de O Livro dos Espíritos faz-se necessário uma atualização de linguagem e da abordagem. O exemplo maior de Jesus e a moral por ele pregada continuam atuais, porém o contato com culturas não-cristãs, o avanço das ciências sociais, a revolução sexual e a emancipação da mulher devem ser levadas em conta ao formarmos o arcabouço moral próprio ao Espiritismo. A análise apenas desse livro necessitaria de um trabalho completo e não me sinto com a devida competência para faze-lo, portanto ofereço como sugestão extrairmos dele o cerne da moral de Jesus, guia mestra de nossas ações. Devemos apenas abandonara pretensão de criarmos quaisquer regras rígidas de conduta pois cada ser humano é único e cada caso deve ser analisado em sua plenitude .
Portanto, da análise acima concluímos que a Doutrina Espírita necessita de muita atualização no que tange a suas explicações sobre os fenômenos materiais, menos atualização e mais investigação no que tange ao mundo espiritual e novas abordagens, evolução e vivência no que tange às questões morais. Como encarar essa tarefa?

II.3 - Atualizar ou Simplificar ?
Será que a Doutrina Espírita tem mesmo que prover explicação aos fenômenos materiais? Por que o Espiritismo precisa abordar os elementos gerais do Universo? Será que conseguiremos oferecer algo de novo, algo que a física, a química e a biologia já não tenham pesquisado?
Kardec ainda vivia no limiar entre a ciência clássica e a ciência moderna. Era comum na sua época um cientista pesquisar vários campos da ciência. Talvez venha daí a tentativa de fazer da Doutrina Espírita uma teoria geral que explicasse tanto o mundo material quanto o mundo espiritual. Hoje sabemos que isso não é mais possível. A complexidade da natureza não mais o permite. Além disso, para que centrar esforços em atualizar essa parte da Doutrina Espírita se podemos muito bem nos valer de milhares de cientistas muito melhor preparados e financiados para isso?
Minha proposta seria abandonar qualquer tentativa de abordagem pela Doutrina Espírita dos fenômenos materiais e remeter qualquer questão às ciências já estabelecidas. Seria uma demonstração de humildade e realmente mostraria que o Espiritismo tem lugar no mundo moderno, pois estaríamos abandonando o messianismo e a pretensão de que os espíritos já nos revelaram tudo. Estaríamos definindo como nosso campo primordial de estudo as ciências do espírito.
Assim ao invés de atualizar, vamos simplificar!! É óbvio que o O Livro dos Espíritos e a A Gênese são intocáveis , nada seria mudado e as mesmas seriam entendidas no seu contexto histórico. Porém essa parte seria estudada apenas por seu valor histórico.

II.4 - De volta para o Futuro:
No que tange ao mundo espiritual proponho uma volta ao binômio Pesquisa(Fatos) / Interpretação (Filosófico-Moral). Ou seja concentrar os esforços do Movimento Espírita na descoberta de novos fatos sobre o plano espiritual, o espírito e suas relações com o mundo corporal. Dessa forma deveríamos abandonar a postura de pregadores, tentando fazer prosélitos, contabilizando cada novo convertido como uma conquista e adotar a postura questionadora, investigativa e filosófica. Seria muito mais fácil divulgar o Espiritismo se possuíssemos uma base cientifica mais sólida. Aqui cabe uma decisão por parte do Movimento Espírita progressista. É preciso uma tomada de posição, uma mudança de práticas. Só assim estaríamos realmente vivendo o que pregamos. Se queremos um Espiritismo de caráter científico é necessário que façamos pesquisa. Todos as instituições e centros espíritas deveriam ter como missão a pesquisa espírita. Só esse re-alinhamneto de propósitos garantiria um ambiente propicio a evolução e nos manteria constantemente antenados e atualizados. Essa volta ao passado nos faria atuais, modernos!

II.5 - Vivenciar as Mudanças:
As entidades, centros e os espíritas que realmente querem marcar uma posição diferenciada frente ao Movimento Espírita sectário devem adotar práticas claras no sentido de garantir um ambiente propício a evolução e a atualização constante da Doutrina Espírita.
Ofereço Algumas Sugestões:
1. Alterar o currículo de estudo básico da Doutrina Espírita de forma a encarar a abordagem da Doutrina Espírita quanto aos fenômenos naturais como tendo apenas valor histórico e remeter as ciências mais credenciadas o estudo desses temas.

2. Realmente, adotar postura investigativa no que tange aos fenômenos espirituais. Patrocinar pesquisas, alocar recursos, valorizar tais atividade. Se queremos ser diferentes devemos agir diferente. As entidades alinhadas com a nova mentalidade (a CEPA por exemplo) deveriam ter como parte de sua missão (escrita e assinada) promover a pesquisa espírita, através de patrocínio de pesquisas científicas, desenvolvimento de metodologias de estudo, etc. Investigar deveria estar lado a lado, ter a mesma importância, de divulgar o Espiritismo. No trabalho Um século nas ciências do Espírito que apresentei no VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita: ofereci alguns caminhos práticos como patrocínio de pós-graduandos, formação de rede de pesquisa nos centros afinados, etc. Só estaremos sendo realmente coerentes com nosso discurso no momento em que nossa prática estiver alinhada à nossa teoria. Atualmente um observador externo e isento que visitasse casas espíritas progressistas e religiosas notaria algumas diferenças, como preces sem rituais ou música, mais estudo da doutrina, ausência de imagens, etc. Com certeza, porém, encontraria 80% de similitude: palestras discursivas, mediunidade consoladora, ausência de qualquer investigação.

3. Evolução deveria ser a palavra-chave no campo moral. O Espiritismo pode e deve oferecer suas respostas as questões fundamentais: de onde viemos, quem somos e para onde vamos. Se tivermos um ambiente favorável a evolução, novas abordagens, novas linguagens adaptadas ao meio e a época irão aparecer. Trata-se aqui de atrair também pessoas mais bem preparadas e com algo a contribuir. Seria no compartilhar de idéias, no embate de posições antagônicas, na real fundamentação das proposições que poderíamos evoluir. Vejamos os exemplos do VI SBPE. Em um ambiente que estimula a produção, a discussão e a apresentação de novas abordagens tivemos trabalhos tão variados como: O Perfil Psicológico da Obsessão e o conceito de transcomunicação mental (Jaci Régis); Uma Contribuição da Doutrina Espírita para a conservação do Meio Ambiente Físico e Psíquico e o conceito de Psicosfera planetária (Orlando Vilarraga); Milenarismo e Espiritismo (Eugênio Lara); O Crime e os Espíritas (Jacira Jacinto da Silva), para citar apenas alguns. A construção da abordagem moral da Doutrina Espírita não pode sair de concílios de notáveis. O processo natural seria pensadores espíritas oferecerem suas contribuições e as mesmas serem absorvidas (ou não pelo movimento). O COEM me parece um raro exemplo de trabalho de pesquisa e proposição de método que devido a sua consistência e coerência passou a ser adotado por quase todo o movimento espírita. Outro bom exemplo foi a idéia da espiritização e suas conseqüências: mais estudo das obras básicas, alterações nas educação espirita para crianças (de Escolas de Evangelho para Escolas de Espiritismo).

4. Utilizar a linguagem e os meios de comunicação e educação mais modernos disponíveis. A Internet é um ótimo exemplo. Graças à ela temos hoje a possibilidade de formar uma rede de espiritas interessados, debatendo assuntos relevantes e divulgando novas propostas (A EspiritNet é um exemplo vivo de um grande passo nessa direção). No futuro poderemos ter cursos de Espiritismo via rede, ampliando a penetração da idéia espírita. No
III - Conclusão:
Não tenho a pretensão de esgotar esse tema e com certeza podemos atualizar a Doutrina Espírita em muitos outros aspectos (práticas mediúnicas, passe, forma e linguagem das palestras, arquitetura das casas espíritas, etc.). Com certeza o congresso da CEPA oferecerá interessantes perspectivas sobre o tema. Eu ofereço a minha: antes de atualizar, vamos assumir realmente uma postura científica simplificando a Doutrina. Vamos nos concentrar nos temas em que realmente podemos oferecer algo de novo e bom para o ser-humano. Temas como a evolução moral infinita, a relação com o mundo dos espíritos, os processos reencarnatórios, a busca da felicidade pelo bem e pelo belo. Definido nosso escopo, podemos definir a missão de cada entidade, instituição e de cada espírita progressista: Pesquisar as Ciências do Espirito e Divulgar a Doutrina Espírita. Definida nossa missão passemos à ação: de volta para o futuro (binômio pesquisa/ interpretação) através do real incentivo e patrocínio de pesquisas, criando-se um ambiente propício à constante atualização e evolução das idéias.

Bibliografia:

1. REIS, Ademar A.C.: Como? Uma proposta metodológica para atualizar o Espiritismo, Anais VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (S.B.P.E.), Ed. Licespe, 1999, Santos - SP.
2. Regis, Jaci: A dificuldade em Aceitar o Novo, publicado em Jornal Abertura, Ano XIII - Nº 150, Julho de 2000.
3. Ferreira, Aurélio B. de H.: Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira, 2ª Edição, 1986, Rio de Janeiro- RJ
4. KaRdec, Allan: O Livro dos Espíritos, Ed. Instituto de Difusão Espírita, 3ª Edição, 1977, S. Paulo - SP.
5. Kardec, Allan: O Livro dos Médiuns, Ed. FEB, 34ª Edição, 1976, Rio de Janeiro - RJ.
6. Kardec, Allan: A Gênese, Ed. Lake, 18ª Edição, 1997, S. Paulo - SP.
7. KaRdec, Allan: O Céu e o Inferno, Ed. Lake, 5ª Edição, 1977, S. Paulo - SP.
8. Kardec, Allan: O Evangelho Segundo o Espiritismo, Ed. Lake, 16ª Edição, 1978, S. Paulo - SP.
9. Régis, Marcelo C.: Um Século nas Ciências do Espírito, Anais VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (S.B.P.E.), Ed. Licespe, 1999, Santos - SP.
10. Regis, Jaci: O Perfil Psicológico da Obsessão, Anais VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (S.B.P.E.), Ed. Licespe, 1999, Santos - SP..
11. Vilarraga, Orlando: Uma Contribuição da Doutrina Espírita para a conservação do Meio Ambiente Físico e Psíquico, Anais VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (S.B.P.E.), Ed. Licespe, 1999, Santos - SP.
12. Lara, Eugenio: Milenarismo e Espiritismo, Anais VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (S.B.P.E.), Ed. Licespe, 1999, Santos - SP.
13. Silva, Jacira J.: O Crime e os Espíritas, Anais VI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (S.B.P.E.) , Ed. Licespe, 1999, Santos - SP.