Artigo de Ademar Arthur Chioro dos Reis - Julho de 2000

A Atualização Doutrinária não é Modismo

É mesmo muito difícil entender a ferocidade e intransigência que tem pautado a discussão entre os espíritas. A observação atenta, desprovida de preconceitos e desapaixonada, entretanto, permite identificar de onde parte esta postura tão sectária e sua motivação.

Há raizes históricas, disputas antigas, que neste momento voltam a se agudizar em torno de questões secundárias (que não levam a absolutamente lugar nenhum, como por exemplo se o Espiritismo é ou não uma religião) e outras absolutamente necessárias, centrais para a sobrevivência, evolução e o próprio futuro da Doutrina Espírita: a necessidade de empreendermos a atualização do Espiritismo.

A seguir, destaco alguns pressupostos que considero de fundamental importância para a formulação de uma proposta metodológica de atualização do Espiritismo, como forma de contribuir ao debate que vem se desenvolvendo na lista:

O Espiritismo é a ciência que trata das relações do mundo espiritual e material, portadora de uma concepção filosófica humanista, que resulta em conseqüências éticas e morais (comuns às preocupações religiosas sinceras e desprovidas de ritualismos e sectarismos)

A atualização não pode ser um modismo mas deve constituir-se num processo permanente, incorporado definitivamente à práxis espírita;

Deve admitir a heterogeneidade, o direito de ser e pensar diferente, de estabelecer novos referenciais a partir dos fundamentos espíritas básicos;

É necessário reconhecer que a Filosofia Espírita, fundamentada na obra de Kardec, permite o desenvolvimento de distintas leituras, a partir do conjunto de interesses e necessidades humanas (e que isso também é democrático);

Não é necessário decidir por maioria quantitativa, mas pela capacidade/qualidade do conjunto de idéias impor-se pela sua própria força, clareza e atualidade, como novas verdades;

É fundamental buscar de forma prioritária a atualização em torno de pontos convergentes. O que é consensual em primeiro lugar, o que pode vir a ser consensual (mesmo que parcialmente) em segundo plano e por último, aquilo que de fato estabelece as distintas concepções e nos divide (mesmo que partamos ou não dos mesmos referenciais);

Só se atualiza o que não se nega, o que ainda tem valor essencial (caso contrário estaríamos substituindo o Espiritismo por algo diferente. Somente se atualiza sobre bases estabelecidas (mesmo que em parte ultrapassadas ou defasadas). Por outro lado, reconheçamos, há novos conhecimentos a serem formulados;

Que a busca da atualização deve ser estabelecida a partir das mesmas bases sérias e coerentes que pautaram a obra de Kardec, guiada pela racionalidade e pela ciência, sem afetações, partidarismo, sectarismo e misticismo.

Allan Kardec identificou desde o primeiro instante a necessidade de atualizar o Espiritismo, o que pode ser claramente percebido em trechos de sua obra, em particular no Capítulo Primeiro de A Gênese - Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo, intitulado Caracteres da Revelação Espírita, publicado em 1868 e que já havia sido publicado por Kardec, numa primeira versão, na Revista Espírita em 1867.

“O Espiritismo, avançando com o progresso, jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ele se modificará nesse ponto; se uma verdade nova se revelar, ela a aceitará.” (A Gênese, cap. I - Caracteres da Revelação Espírita).

“O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão-só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as idéias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias da sua perpetuidade.” (Obras Póstumas - Constituição do Espiritismo - Dos Cismas).

“Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão como referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros, nãos os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.” (obra citada).

“O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade.” (obra citada).

“Serão estas as atribuições principais da comissão central: 1°...; 2° O estudo dos novos princípios, suscetíveis de entrar no corpo da Doutrina; 3° ... 15O A convocação dos congressos e assembléias gerais.” (Obras Póstumas - Constituição do Espiritismo - Comissão Central).

Que há setores significativos do movimento espírita que consideram desnecessário e lesivo qualquer processo de atualização do Espiritismo, uma vez que concebem sua origem e natureza como “divina”, portanto passível de modificação apenas por ordem e graça da “espiritualidade”.

Que mesmo companheiros espíritas que discutem a necessidade de atualizar o Espiritismo, em função de distorções em suas concepções e formação doutrinária, tendem a assumir uma postura arrogante e conservadora do ponto de vista intelectual. Vejamos, por exemplo, um pequeno trecho de um “mail” que identifica claramente esta concepção:

“Apesar disso ainda temos uma sólida e imbatível Doutrina. É plataforma segura para se alcançar novos vôos com a ciência responsável e metodológica, pois esta é a “sina” do Espiritismo: ir onde a ciência está, já sabendo que a ciência vai onde o Espiritismo já foi...” (o grifo é meu)

Que é indiscutível a atualidade de partes importantes e fundamentais da obra de Kardec, não superadas pela Ciência, encontrando-se estas, portanto, em plena vigência.

Que atualizar o Espiritismo é procurar “torná-lo atual, situá-lo na época em que vivemos, torná-lo presente e atuante em todos os setores do pensamento humano. Isso implica numa releitura, numa ressignificação, portanto, numa revisão dos conteúdos, não só da obra de Allan Kardec, como da dos demais autores Espíritas, encarnados e desencarnados, como também da linguagem e do método empregados na sua elaboração. Não se pode atualizar sem revisar.”

Não se deve permitir a alteração ou supressão, parcial ou completa, dos textos e das obras de qualquer autor que seja – e em especial a de Allan Kardec. “Já as idéias, concepções e teorias expostas nas obras da Codificação e nas que lhe são complementares, como o próprio fundador do Espiritismo afirmava, não sendo mais do que a expressão do conhecimento dos seus autores, subordinadas ao contexto de uma época, são passíveis de revisão e de atualização.”

Proponho, a partir destas colocações preliminares, conclamar a todos os Espíritas sinceros para que dirijamos nossos esforços, mentes e corações, de forma respeitosa e inteligente, para o debate de temas e questões centrais.

Ademar Arthur Chioro dos Reis é médico, presidente do Centro Espírita Allan Kardec, de Santos, membro do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita - CPDoc e delegado da Confederação Espírita Pan-americana (Cepa).