Artigo de Eugênio Lara - Novembro de 2000

Aprendendo a ser Espírito

"Estamos aprendendo a ser espíritos", ouvi certa vez em uma semana de palestras espíritas. Fiquei a pensar naquela frase e me enchi de interrogações. Pois se aprendemos no Espiritismo que somos espíritos reencarnados, o que somos então, antes de aprendermos a ser espíritos? Pseudo-espíritos, semi-espíritos, quase espíritos? Há um sentido figurado nessa afirmação.
A meu ver, ser espírito é exercitar a imortalidade. Mas, o que significa isso? Ora, que diante da materialidade da vida podemos sentir muito mais, muito além do que os sentidos físicos proporcionam. A idéia de continuidade existencial, se for introjetada de modo efetivo, conduz necessariamente a uma tomada de consciência. Somos o que somos, onde estivermos, aqui, lá, acolá, seja onde for. No céu ou na terra, no físico ou no extra-físico. Os mesmos, mas em mutação permanente, a metamorfose ambulante de que fala aquela bela música de Raul Seixas.
Os medos permanecem mas ganham outra conotação. Na verdade, muda-se o sentido, o eixo vivencial se rearticula de outra maneira. Ao se maturar o princípio da continuidade existencial, ao incorporarmos isso em nosso patrimônio intelectivo, deixamos de ser aquele indivíduo alienado de si mesmo, perdido no tempo e no espaço. A vida deixa de escorrer pelas nossas mãos e passa a ser conduzida, direcionada conforme nossos objetivos e ideais. Se tropeçamos, é só levantar e continuar a jornada, sem ficar olhando para trás, se lamentando.
Há um outro brilho no olhar e as cores da vida parece que se tornam mais delineadas em sua textura. Outras formas de sofrimento surgem. E a relativa felicidade deixa de ser aquela do bruto, do brucutu ensandecido, movido pelos instintos e dominado pelas paixões.
Li em algum lugar que a maturidade surge quando não damos importância para aquilo que realmente não é importante. Jorge Luís Borges, no fim da vida, desejava ser esquecido como autor. Queria se diluir na sua obra. Exigimos a autoria de determinada mensagem, quando o que importa é a idéia. Somos apegados a questões sem importância. Da cor da pele à griffe da roupa. Da religião ao time do coração. Nos apegamos a títulos, condição econômica, status quo, a tudo aquilo que, no fundo, só nos trará aborrecimento.
Judeus e palestinos preferem o ódio ao entendimento. Não querem a paz. Na Irlanda, católicos e protestantes se degladiam, esquecendo-se do próprio sentido da religiosidade que abraçaram, pois a querela se dá em nível geopolítico, cultural.
Kardec tinha razão quando identificou no egoísmo e no orgulho os dois grandes males que afligem a humanidade, no exercício da moralidade. Enquanto houver a predominância desses sentimentos torpes não há sistema social que subsista, por mais perfeito que seja. Será devidamente detonado, violentado e deturpado pelas emoções primárias, pelo interesse pessoal.
"Agora enxergo de uma outra maneira, com mais clareza" afirmou uma deficiente visual. O deficiente auditivo mergulha diariamente em seu mundo interior. A deficiência oral força o seu portador a pensar antes de falar a fala, que não tem fonemas, mas que se expressa por sinais, códigos. Pessoas que falam demais, sem pensar, produzindo intrigas e ofendendo as pessoas, se ficassem privadas da palavra por um certo tempo, seriam forçadas a buscar o equilíbrio perdido.
Estar encarnado é estar sujeito às vicissitudes da vida, às limitações materiais que a existência nos impõe. Temos que superar os limites, transcender. A cultura surge daí, da limitação material subjugada pela inteligência. A tecnologia é o instrumental que criamos a fim de dominar a privação existencial, condição factual pelo fato de estarmos encarnados.
Aprendemos por repetição. O fluxo natural da vida, ininterrupto, se impõe, mesmo que o neguemos e forcemos a barra, nos suicidando, ou se esvaindo numa estiolação mental, mórbida e egoística. Somos forçados a sair de nós mesmos e procurar o outro. Os outros são o inferno, dizia Sartre. Já no Espiritismo, os outros são o paraíso, ainda que nos infernizem a vida, nos alfinetando a alma, conduzindo-nos à desgraça moral e material. A decisão final é sempre nossa, absoluta, pois nem a Inteligência Suprema interfere em nosso livre-arbítrio. Aprender a ser espírito é buscar o estado mental de liberdade, desenvolver nossas virtudes e colaborar como demiurgos, como co-criadores que somos no grande cadinho da criação universal.