Artigo de Jaci Régis - Novembro de 2000

Angústia para Mudar

Ele sentou-se sem relaxar. É um homem magro, estatura média, mão longas e ossudas. Seu rosto angular denota uma tensão muscular característica. Sobretudo o olhar denuncia um panorama sutil, de quem não aceita a própria situação.
Não. Ele tem problemas visíveis. Embora seu discurso seja de que precisa mudar e que reconhece todos os entraves que criou para a própria existência, na verdade não aceita que tenha tais problemas.
Essa incapacidade de aceitar a existência de problemas de ordem psicológica não é rara. Não se trata de mero jogo mas de um bloqueio interior. espiritual, que cria uma ilusão perceptiva e conceitual, na qual a pessoa realmente não tem a sensação, o sentimento interior de seu problema.
Pode até reconhece-los intelectualmente dada a exuberância de fatores concretos. Mas só isso não é suficiente. A negação é parte de um processo de resistência e, porque não dize-lo, da falta de humildade de aceitar-se fora de um padrão elegido e mantido no interior da alma, que diz: " o problema está nos outros....".
Ali estava o homem maduro, quase com cinqüenta anos, de mente brilhante e olhar resistindo a interiorização de sua realidade vivencial..
Ele estava zangado. Na ocasião anterior foi-lhe mostrado o quadro de seu comportamento anômalo, prejudicial.. A conversa fora dura, firme, real. Afinal, ele vinha mentindo a si mesmo, era mentiroso quando afirmava querer mudar. Saiu de cabeça cheia.
Como, pensou, acusar-me de um problema que tenho e não tenho? Tenho porque me mostram os fatos e não tenho porque não os sinto, não entram em meu espírito?
Ele não estava nem angustiado, nem em luta interna para mudar. Ele estava ofendido. Sua auto-estima tinha sido atingida. Mostrar-lhe de forma tão crua e objetiva tais problemas (que não eram deles afinal...) era massacrá-lo, atingi-lo em seus brios. Era como se ele fosse uma pessoa sem a mão esquerda e jamais aceitasse que não tinha a mão esquerda...
Olhei-o com carinho.
Propuz-lhe uma analogia.
Quando uma pessoa tem um câncer, o médico receita-lhe quimioterapia ou radioterapia. Esses procedimentos são agressivos. Agridem o corpo tentando arrancar o mal pela raiz. Certamente a pessoa do doente sofre e submete-se a um processo difícil.
Mas de modo algum o médico pretende ofendê-la. A agressão ao corpo tem por objetivo livrá-la do mal que avassala seu organismo.
Da mesma forma, adverti ao homem levemente grisalho, olhos escondendo o interior ou a serviço de seu ego resistente à realidade.
Os problemas psicológicos são como um câncer da alma. Insidiosos, infiltram-se nas estruturas do ser, corroendo a vida, destruindo a possibilidade de ser feliz. O tratamento psicológico não pretende diminuir o amor próprio, ao contrário, tenta estimulá-lo, de modo a desencadear energias internas capazes de, primeiro, fazer enxergar a realidade de seu mundo interior. E depois, ajudar a promover as mudanças que são indispensáveis a qualquer processo de reavaliação da vida.
Penso na multidão de pessoas, homens e mulheres que vagueiam, essa a expressão, na vida terrena, sem jamais se deterem para reavaliar os sentimentos, a vida. e criam uma armadura, uma forma tão forte de isolamento que os arroja para fora da realidade externa e de si mesmos.
Divirto-me quando certas pessoas afirmam que "conhecem a si mesmas" julgando que esse suposto conhecimento seja real, quando não passa, quase sempre, de uma ilusão fortemente alicerçada na negação da realidade.
Todos criamos uma imagem mais ou menos razoável de nós mesmos. Às vezes, entretanto, essa imagem pende para o pessimismo, maltratando-nos ou para uma forma de fuga da realidade, suprindo as necessidades da alma, com uma rígida estrutura de caráter que se torna impenetrável.
Era o caso o homem sentado à minha frente. Criara uma rígida estrutura de auto sustentação, na qual a emoção foi banida. Os clamores mais profundos da alma, a pedir amor e relações produtivas, foram reprimidas de tal forma que vivia sem alegrias e, mesmo assim, mantinha olimpicamente o ego defendido por uma barreira de medo e de suspeitas sobre o que lhe sucederia se ele , afinal, resolvesse ultrapassar a barreira que erguera.
Acostumara-se, desde criança, a não-ser, a viver numa redoma de vibrações que, todavia, não lhe tinha incomodado, mesmo que tornara sua vida uma espécie de ermitão emotivo, que ria e conversava, que estudava e aprendia, que discutia política, mas que estava emocionalmente esfacelado por dentro.
Embora a barreira que criara, no imo d'alma sabia-se infeliz e também sabia que o caminho de recuperar a vida estava aberto. Entretanto, acovardara-se emocionalmente e continuava lutando bravamente para não mudar, embora soubesse que precisava fazê-lo.
O leitor dirá, mas que confusão!
De fato. Os neurocientistas estudam arduamente as funções cerebrais e não conseguem compreender o fluxo de energias, a formação de idéias e de sentimentos num cérebro compartamentalizado.
Mas nós sabemos que sobre o cosmo cerebral e interagindo com ele, o Espírito envia e recebe cargas mentais que definem seu caráter, seu caminho e sua vida.
Saber que precisa mudar é um caminho. Mas pode acabar num caminho circular, dando voltas sobre si mesmo.
É preciso se desenvolva uma angustia de mudança, que é um desejo profundo e definitivo que mobiliza a alma, criando energias interiores capazes de quebrar o isolamento, vencer o medo e precipitar-se na misteriosa viagem da realidade.